“Outra surpresa do Joel, a presença no evento, entre outras entidades, do bisneto de Gugunhana, o histórico Gugunhana, o líder tribal detido por Mousinho de Albuquerque e injustamente encarcerado no Forte de São João Batista, em Angra.”
Há momentos únicos na vida das pessoas, que, em predestinação, se nos dirigem sem que os chamássemos. E ainda bem que assim sucede. Este aconteceu-me no passado dia 2 do corrente mês de Novembro, ao serão, na Livraria “Lar Doce Livro”, propriedade do escritor Joel Neto, localizada na Rua de São João, em Angra do Heroísmo. Surpreendentemente, o Joel trouxe-nos nessa noite à “Lar Doce Livro” Mia Couto, o escritor moçambicano Prémio Camões, em 2013, esse “monstro” da literatura contemporânea, extremamente traduzido e não menos premiado. Mia Couto lançava “A Cegueira do Rio”, romance em boa hora publicado pela “Caminho”, da “Leya”.
A ambiência dos saraus da “Lar Doce Livro” faz-me lembrar um pouco as velhas e saudosas reuniões familiares, cheias de calor humano, em convívios de todo agradáveis de gente que, no caso presente, se reúne, como ímanes, em torno do ideário superior da boa literatura. E o espaço, confortavelmente decorado, com bebidas e refeições e livros, muitos livros, também com música ao vivo, chama e chama e chama e enche e enche e enche … Um sucesso.
Joel Neto, escritor português, igualmente muito publicado, um brilhante entrevistador, fez uma entrevista a Mia Couto de meter inveja a qualquer jornalista, tocando um pouco em tudo, desde o romance, agora lançado, à situação política conturbada que se vive em Moçambique, terra natal de Mia Couto, manifestamente ignorada pela Europa e demais mundo ocidental; à nova colonização; até sobre as eleições americanas prestes a prenderem (ou a desprenderem) os nossos dias e o nosso destino presente e futuro de cidadãos viventes num mundo infelizmente cada vez mais dividido. E o entrevistado, uma inteligência fulgurante, respondeu com a sapiência de um mestre, com a humildade de um homem comum e com a verdade nua e crua, doa a quem doer, arrancando palmas, muitas palmas. Mia Couto foi definitivamente adotado. Via-se gente com seis livros do escritor nas mãos a dirigir-se-lhe para que ele os assinasse. Uma loucura. A livraria abarrotava de gente, o que vem comprovar o sucesso da iniciativa.
Outra surpresa do Joel, a presença no evento, entre outras entidades, do bisneto de Gugunhana, o histórico Gugunhana, o líder tribal detido por Mousinho de Albuquerque e injustamente encarcerado no Forte de São João Batista, em Angra. O bisneto do famoso régulo africano lá estava em presença física, curiosamente a escassos mil metros da prisão do seu bisavô, ratificando o pensamento de Mia Couto sobre a história de uma África magoada. Falei com os dois. Pedi a Mia Couto que aconselhasse um romanceador iniciado. “ Os personagens são o escritor, João. Há pois que os escrever sempre com verdade” – respondeu-me sabiamente. Tão simples a resposta e tão clara e evidente.
Obrigado, Joel, e parabéns por este salto de gigante, nos Açores, em tão poucos meses, na promoção em qualidade da literatura, em particular, e da cultura, em geral. É preciso coragem, ademais quando se está tão longe, como estamos, da grande metrópole dos eventos, que brilhantemente equiparas.
Um orgulho para todos nós. Não é para qualquer um.
João Gago da Câmara