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Nascimento da autonomia açoriana

Corria o Natal de mil quinhentos e oitenta. Num calhau negro junto ao mar respingavam minúsculas flores de ressalga que molhavam as lapas e os musgos que saltitavam de alegria. O céu azul funil espreitava pelo bordado das imensas paletas de lã. No horizonte uma linha ténue transportava a lua cheia que subia o firmamento enquanto, no lado oposto, o sol das dezassete horas se ia deitando sobre o mar tingindo-o de amarelos diversos e rasgando as nuvens esparsas em laivos de carmim. Ali sentado um menino observava a atividade desta transformação. Sorria feliz ao ver a natureza a vivenciar de exuberante exultação, num circuito constante de cores e multiplicativas vidas simples e eternamente felizes. Mas, ao mesmo tempo, sentia-se triste: faltava, sentia, um vazio sem explicativa. Vivia intensamente aquela imagem multifacetada de vida e apercebia-se que a natureza tinha um modo de felicidade sem complicação, e até explicava esse modo de vida, porque lhes compreendia a simplicidade de viver por viver como suficiente, pela mera oportunidade de nascer por entre zilhões de outras possibilidades. Mas ele, sendo parte dessa amálgama de biologia e química, sentimento que nem sabia qual a fórmula explicativa, não sentia essa maneira de viver. Tantas vezes à noitinha perante a amplitude do firmamento esse sentimento redobrava: ali a felicidade era tão farta que as próprias coisas brilhavam em tal porção que iluminavam a escuridão do universo. Como gostaria de ser apenas outro, um búzio, ou uma lapa, uma craca, um bodião, um sargo, o melro preto, o açor; qualquer coisa que fosse diferente, que sustivesse aquela dor.
Sentado ali na ponta da ilha Terceira ia pensando que não teria sentido criar-se o mundo em que umas coisas são felizes e outras incompletas. Tudo, pensava, tem uma fórmula completa, pelo simples facto de se constituírem vida. A vida, pensava, é vida porque é total, encerra-se num circuito prenhe de todas as coisas possíveis. Chegado aí, exclamou, ainda em pensamento, que seria verdade essa ideia: de que tinha tudo dentro de si próprio; e, assim sendo, só necessitaria de descobrir o que levaria a fazer estalar adentro do seu peito a completude de olhar em frente. Segurava, pela mão, a sua pequena embarcação. Deixou o barco deslizar da terra até ao mar, demoradamente, primeiro a quilha, depois o corpo, todo. Deixou-se cair lentamente, sentindo, demoradamente, o mar frio entranhar-se primeiro nos pés, depois nas pernas, por fim no corpo, quase todo, deixando os olhos pousados na linha d’água. Pestanejou, e repetidamente, de surpresa em surpresa, compreendeu que admirava o mar e o céu, mas esquecera-se da ilha! Sentiu, e era tão bom o sentimento que o deixou morder demoradamente, a necessidade de lutar pela sua ilha, pelas ilhas, pelos Açores, a personificação da autonomia com a sua Angra e a suas gentes. A sua consciência humana e política era agora de pessoa completa porque ali nascia de novo pela renovação de se tornar adulto ao epilogar no seu peito “antes morrer livres do que em paz sujeitos”.

NOTAS:
14-10-2024.
Publicado no 1.º volume da 3.º edição da Coletânea de Contos de Natal, “Natal em Palavras”, Chiado Editora, 2024.
Na década de oitenta do século XVI Angra foi guardiã da soberania portuguesa e desse acontecimento nasceu, em 1582, o lema da atual Região Autónoma dos Açores, «Antes morrer livres que em paz sujeitos». Este é o primeiro grande acontecimento político da consciência autonómica da História Política Açoriana.

Arnaldo Ourique

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