João Mendes Coelho, colaborador regualr do “Diário dos Açores”, é um dos médicos da Psiquiatria e Adictologia mais reputados a nível nacional. Pós-graduado em Suicidologia, em Dependências Químicas e em Psicoterapia Cognitivo-Comportamental, é docente convidado da Universidade dos Açores. Concedeu esta entrevista ao nosso jornal num momento em que é reconhecido, pela sociedade açoriana, que a nossa Região está a passar por um grave problema de dependências. O especialista lança alertas e deixa desafios.
Falou-se muito em 2024 da situação social de muitos açorianos, especialmente os jovens, no que toca a dependências. Como caracteriza o ano que passou? Há razões para nos preocuparmos?
A problemática das dependências nos Açores não é nova, mas a perceção pública sobre o assunto aumentou significativamente ao longo dos últimos anos.
Esta maior atenção deve-se, sobretudo, às notícias recorrentes de grandes apreensões de droga, ao surgimento de “novas” drogas sintéticas que potenciam comportamentos violentos e pequenos delitos, e ao notório crescimento do número de pessoas em situação de sem-abrigo em Ponta Delgada, onde se concentram a maioria dos apoios sociais para estas pessoas.
Na minha perspetiva, há motivos de preocupação.
O envolvimento de jovens adultos e adolescentes em comportamentos aditivos, químicos ou comportamentais, é particularmente preocupante e exige uma resposta urgente e concertada.
É fundamental reforçar a prevenção, apostar na literacia em saúde e reorganizar os serviços vocacionados para o tratamento, de modo a chegar aos mais vulneráveis e dar resposta aos novos problemas, antes de culminarem em quadros clínicos mais graves e impactantes.
Os relatórios publicados pelo ICAD sobre as dependências dos jovens e o da pobreza publicado pelo INE são desanimadores para os Açores ou vê naqueles indicadores alguns avanços?
Se olharmos para os indicadores, vemos que, apesar dos esforços, os Açores continuam a ocupar os últimos lugares, em comparação com outras regiões.
O ponto de partida era mau e deve ser encarado como um desafio multifacetado: a realidade é que, se não se investir de forma robusta e inteligente, em várias frentes em simultâneo, dificilmente se irá alterar o que tem atrasado o desenvolvimento humano e socioeconómico regionais há décadas.
Importa notar que os mesmos fatores que levam à pobreza e desigualdade social são precisamente os que determinam uma maior prevalência de doença mental, suicídio e comportamentos aditivos nos Açores.
Há, no entanto, algum avanço na tomada de consciência coletiva e algumas medidas de prevenção começam a mostrar pequenos resultados.
Estes progressos não são ainda suficientes para inverter os determinantes sociais da saúde.
Tem-se falado muito de turismo e o seu relacionamento com a pobreza. Acredita que o crescimento do setor na região, sendo bom por um lado, está a criar mais desigualdades?
O crescimento do turismo pode, à primeira vista, reduzir o desemprego e criar crescimento económico, mas não tem expressão significativa no combate às causas enraizadas da pobreza na região.
Vemos que a realidade competitiva do setor do turismo frequentemente deixa para trás os grupos mais vulneráveis: pessoas com menor formação ou capacidade laboral não conseguem acompanhar as exigências do mercado, o que leva a ciclos de absentismo laboral, perda de trabalho e quadros de agudização de doença mental crónica, alimentando uma série de problemas, de que o consumo de álcool e outras substâncias são apenas exemplos.
Isso perpetua ciclos de pobreza na população residente que contrasta de forma gritante, por exemplo, com os preços cada vez mais elevados da habitação e até dos produtos básicos.
A sensação de desigualdade acentua-se, pois enquanto alguns beneficiam do crescimento económico proporcionado pelo turismo, outros enfrentam acrescidas dificuldades sequer para cobrir despesas essenciais.
Os doentes que recorrem às suas consultas atribuem as causas das dependências a algum quadro regional que seja padrão comum?
Existe, sim, um padrão comum. Há um défice generalizado de literacia que se reflete em escolhas erradas em vários domínios: alimentação desequilibrada que leva à obesidade e problemas cardiovasculares e diabetes, consumo de tabaco, álcool, drogas ilícitas ou jogo patológico, como a raspadinha ou as apostas desportivas.
Além disso, o isolamento e a falta de esperança são frequentes na população que acompanho.
A maioria das pessoas com problemas de dependência, apresenta também quadros depressivos e de ansiedade, ou mesmo doença mental grave, sem esquecer os comportamentos suicidários, que acabam, com frequência, por ser a ponta visível de um icebergue muito maior.
O pedido, por parte da região, à Assembleia da República, para criminalizar drogas sintéticas que circulam por cá, é uma boa medida?
É uma medida absolutamente necessária e que carece de revisão periódica regular.
A demora na criminalização das três novas substâncias que têm sido identificadas nos Açores nos últimos meses é inconcebível, pois, por enquanto, quem as trafica fá-lo impunemente, por não constarem das tabelas da Lei da Droga.
Urge criar uma “via verde” para incluir as novas substâncias na legislação portuguesa, logo após a sua identificação, em qualquer ponto do espaço comunitário, para que o tráfico seja efetivamente punido e, assim, fortemente desincentivado.
Importa, porém, não confundir a criminalização do tráfico com a do consumo.
Consumir não deve ser encarado como crime, mas deve continuar a ser considerado um problema de saúde mental que requer intervenção multidisciplinar.
Estamos a perder o combate às dependências, sobretudo nas novas drogas, ou vê algum avanço?
A retórica da “guerra às drogas” vem do tempo do Presidente Nixon e, tal como no combate ao cancro, sabemos que existem múltiplos tipos – a Agência Europeia para as Drogas (EUDA) monitoriza atualmente mais de 1000 novas substâncias psicoativas –, em constante evolução, o que inviabilizará certamente uma erradicação total.
Ainda assim, é crucial não desistir de investigar a todos os níveis, para saber como prevenir e intervir.
Devido às mudanças no perfil das drogas, aos tratamentos desarticuladas ou ineficazes, sobretudo no que respeita às drogas psicoestimulantes que têm abundado nos Açores e na Madeira, precisamos de um novo paradigma regional na monitorização do fenómeno, na prevenção e na intervenção multissetorial.
Em termos de organização, defendo a criação de um instituto regional, equivalente ao Instituto para os Comportamentos Aditivos e Dependências (ICAD) do continente, que conjugue as valências técnico-científicas, articule com os diversos parceiros regionais, já reunidos na Task force, mas também nacionais e internacionais, incentive a investigação e monitorize o fenómeno na região e que, finalmente, agregue num só organismo a Direção Regional de Prevenção e Combate às Dependências e a Estrutura para a Saúde Mental (EPSM), já que as dependências são, em primeiro lugar, um problema de saúde mental e, porventura, um dos principais problemas de saúde pública da região.
Vê a sociedade açoriana mobilizada para estes problemas?
Há uma preocupação crescente em toda a sociedade. Pais, professores, autarcas e até os jovens estão mais conscientes das consequências das dependências, sobretudo com as “drogas sintéticas”, mas ainda se desvaloriza ou desconhece as consequências do consumo de álcool, canábis e das dependências comportamentais.
Devo sublinhar, ainda, o desconforto e o desânimo de muitos profissionais de saúde, educação e serviço social que, demasiadas vezes, se sentem impotentes face à dimensão e complexidade do problema.
É fundamental envolver a comunidade na reflexão e nas tomadas de decisão sobre as eventuais medidas a aplicar, designadamente na taxação acrescida do tabaco e do álcool, na limitação da venda de bebidas alcoólicas a partir de determinada hora ou até na proibição absoluta de conduzir após o consumo de álcool.
Se a sociedade não fizer esta discussão e não se conseguir reconhecer a necessidade de mudar hábitos e comportamentos, qualquer alteração legislativa será vista como uma restrição da liberdade individual e não como um incentivo a escolhas mais saudáveis e seguras e, logo, a sua implementação tenderá a ser menos eficaz.
Como deveríamos atuar neste novo ano?
Articulação e Cooperação em Saúde
Em São Miguel, que é a realidade que conheço melhor, é essencial gerir de forma eficiente e centralizada as IPSS que atuam nos Comportamentos Aditivos e Dependências (CAD).
Federar estas IPSS com as Equipas de Saúde Mental Comunitária da Unidade de Saúde de Ilha de São Miguel (USISM) e a Psiquiatria do Hospital do Divino Espírito Santo (HDES) numa resposta integrada seria uma hipótese.
É necessário um esforço conjunto, com missões e objetivos muito bem definidos, sem sobreposições desnecessárias, para se dar uma resposta eficiente e proporcional aos problemas.
A intervenção precoce em menores que vivam em ambientes familiares com doença mental grave ou dependência de álcool ou de substâncias ilícitas ou outros fatores de risco é, na minha opinião, um fator crítico de sucesso.
Literacia em Saúde
Apostar em programas validados de literacia em saúde mental, para que os indivíduos saibam reconhecer, desde cedo, sinais de alerta, riscos e formas de prevenção, podendo procurar apoio adequado o mais atempadamente possível.
Não é necessário “inventar a roda” — existem já metodologias de eficácia comprovada que podem facilmente ser implementadas nos Açores.
Sublinho que o desejável aumento da literacia em saúde mental da população aumenta consequentemente a procura por cuidados nesta área e, portanto, o investimento na sua disponibilização tem de ser proporcional ao realizado em literacia.
Emprego Apoiado / Protegido
Criar e incentivar programas de emprego apoiado e protegido para as pessoas mais vulneráveis. Além da estabilidade laboral que ajuda a quebrar ciclos de pobreza e a reduzir comportamentos de risco associados às dependências, é fundamental trabalhar na progressiva integração e participação ativa na comunidade e estimular a autonomização de indivíduos e das suas famílias.
Habitação
O acesso a habitação digna é uma pedra angular.
Políticas de apoio ao arrendamento, aquisição de casa própria ou habitação social são determinantes para garantir condições de vida estáveis.
Sem isso, a promoção de saúde mental e a prevenção das dependências ficam muito seriamente comprometidas.
Até alcançarmos esse ponto, soluções descentralizadas de Ponta Delgada, tipo housing first, drop-in ou albergue para pessoas em exclusão social grave, são medidas urgentes.
Promoção Cultural e Desportiva
É essencial incentivar, desde cedo, a prática desportiva regular, o ensino da música e o envolvimento noutras atividades culturais, leitura, cinema, voluntariado e a partilha de experiências entre os mais jovens, a nível intermunicipal ou entre ilhas, bem como a realização de intercâmbios nacionais e internacionais.
Este tipo de atividades, envolvendo as famílias, fortalece a autoestima, a coesão social e familiar e cria alternativas saudáveis de convívio interpares e ocupação de tempos livres.
Segurança e Justiça
Tem havido progressos, fruto do investimento nas áreas policiais e forenses.
É importante manter e reforçar a cooperação entre forças de segurança, tribunais e serviços sociais e de saúde, assegurando uma abordagem humanista, que não seja meramente repressiva, mas também preventiva e reabilitadora.
Participação e Cidadania
Integrar a população nas decisões estratégicas locais e regionais é essencial para garantir que as medidas adotadas reflitam as necessidades e os anseios dos açorianos.
Esse envolvimento não só promove soluções mais eficazes, como também dá sentido de pertença e esperança no futuro, evitando que se dependa apenas de fenómenos externos conjunturais, como o crescimento do turismo.