Regressado aos Açores em 1975, José Enes embrenhou-se na gestão universitária. Contudo, o Filósofo-Reitor não se esqueceu da Filosofia: tendo bem presente a realidade açoriana, por razões estratégicas fez nascer, com os seus colaboradores, uma licenciatura em Histórico-filosóficas. A opção tomada na altura, que alguns, porventura, consideraram estranha, foi, sem dúvida, uma solução inteligente no contexto da Região, porque permitia uma economia de meios e um conjugar de esforços. Depois, quando as circunstâncias aconselharam, as duas áreas ganharam independência. Na licenciatura em Histórico-filosóficas e, posteriormente, nas licenciaturas em Filosofia e em História e nos restantes cursos, a Universidade dos Açores acolheu uma das ideias defendida e praticada pelo seu primeiro reitor: a universidade deve estar enraizada na sociedade envolvente. Esse objetivo tem-se concretizado na investigação e nas publicações levadas a cabo pelo corpo docente e graduados pelo Universidade: História dos Açores, os pensadores açorianos, ensaístas, filósofos e escritores, e a investigação na área das ciências humanas e outras. Os resultados desta opção estão à vista nas publicações vindas a lume.
Enquanto decorria a formação do corpo docente da Universidade, com particular cuidado convidou para a lecionação em Filosofia, que foi o caso que acompanhei mais de perto, alguns dos professores de Filosofia mais brilhantes a lecionar no Continente.
Mas se o Reitor-Filósofo não se esquecia da Filosofia, o académico não deixava para trás a sua carreira e, alguns meses depois de deixar a reitoria da Universidade, fez as provas de agregação (1983), de que resultou o livro Linguagem e Ser, em cujo prefácio o Professor Gustavo de Fraga afirma que o autor continua «nos caminhos que […] São Tomás e Heidegger lhe despertaram e num método de acesso em que muito deve a um e a outro [prolongando, na] linha de Heidegger, a pergunta pelo sentido do sentido» [ENES, José – Linguagem e ser. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1983, p. 11 (LS)]. Estes são os dois filósofos de referência para José Enes: São Tomás que, como disse noutra crónica, lia em latim desde os quinze, dezasseis anos, e Heidegger cujo estudo aprofundou na Universidade Gregoriana. Aliás, no primeiro capítulo desta obra, o autor afirma: “[o] presente ensaio está intimamente ligado ao estudo de À Porta do Ser”, e a sua elaboração “ficou-se devendo à necessidade de um texto português para um curso intensivo ministrado na Universidade Católica no ano de 1972, através do qual me propusera transmitir o conteúdo essencial de À Porta do Ser” (LS, 22).
Nesta obra, contudo, o próprio autor diz haver novidades. Em primeiro lugar, um aperfeiçoamento do método, ou seja, do caminho para chegar ao sentido do ser, o que lhe permitiu duas novidades: “a descoberta do sentido do sentido e a denominação do método como análise expectante” (LS, 22). Ainda em comparação com o À Porta do Ser, nos materiais linguísticos utilizados nas análises entravam o latim, o latim tomista, em Linguagem e Ser esses materiais “pertencem primordialmente ao português” (LS, 22). Outra novidade desta obra é que nela “se põe em relevo e se formula, na óptica de uma redução transcendental, ainda por fazer, a valência eticizante da experiência ontológica original enquanto é instituinte e estatuinte da validade existencial e dos núcleos comportamentais do ser e do ser com no único mundo do homem vigilante” (LS, 22-23).
O último livro publicado pelo nosso filósofo tem por título Noeticidade e Ontologia [Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1999. (NO)], cujos estudos, nas suas próprias palavras, «dão continuidade ao caminho de pensamento que encontrei na investigação hermenêutica sobre a obra tomista e comecei a construir e a andar na tese de doutoramento» (NO, 9). Numa apreciação a este livro, João Manuel Duque, Professor da Universidade Católica, afirma: «na sua globalidade e pela densidade das reflexões, assim como pelo rigor e mesmo beleza da escrita, esta obra, apesar de surgir de artigos dispersos, constitui um exemplo bem elucidativo da maturidade filosófico-literária do seu autor. Trata-se, portanto, de mais um valioso contributo para o caminho vivo e actual da filosofia em Portugal» [DUQUE, João – «Recensões». Revista Portuguesa de Filosofia. 57(2001), p. 176]. Nesta obra, ao tratar da “Noeticidade Hermenéutica”, pretende “trazer à consideração explícita […] a hermenêutica inerente ao próprio acto de fala” (NO, 13). Para o autor não é apenas o conhecer que é interpretar, mas o próprio falar interpreta porque, justifica: aquele acto “só se exerce falando e tal exercício pressupõe o conhecimento do respectivo sistema semiótico, bem como a capacidade de o usar. Este é um pré-saber em estado virtual, pronto a entrar em acção no momento em que o nuto elocutório do intuito, que é o núcleo da emanação visiva da consciência humana, desencadear o comportamento da locução” (NO, 13).
Como grande filósofo que é, sem dúvida nenhuma um dos maiores filósofos portugueses, José Enes tem um tema central na sua obra, o sentido do Ser, e todos os seus textos são uma procura constante de resposta àquela pergunta, quer se trate de escritos que parecem longe da questão enunciada, como sugere o prefácio que escreveu para o seu livro A Autonomia da arte [Lisboa: União Gráfica, s.d., pp. 7-8.], quer se trate de textos claramente filosóficos, como os reunidos em Estudos e Ensaios [Ponta Delgada: Universidade dos Açores, 1982].
Os temas, contudo, não ficavam pelo que normalmente se designa por Filosofia pura, porque, como li algures: “[e]speculação e acção, em José Enes, constituem duas faces da mesma realidade, como o lema “mais conhecer para melhor viver”, da II Semana de Estudo dos Açores traduz. A sua investigação filosófica, pura ou aplicada, tinha por objeto descortinar «a insubstituível pertinência de um discurso científico em ordem a se tornar possível a compreensão de um dado momento histórico e a propiciar o atinado acerto das decisões que selecionarão e actuarão as suas potencialidades de futuração»” [https://www.culturacores.azores.gov.pt/agenda/default.aspx?id=7598 01-10-2024]
José Enes, como procurei mostrar, foi um grande filósofo e, precisamente por isso, sempre valorizou o conhecimento científico. Para dar um exemplo desse apreço, regresso ao texto de 1953, “Universalidade em Literatura”, primeiro ensaio recolhido no livro Açores no Coração¸a que me referi numa das crónicas anteriores. Na parte final, ao falar na necessidade de estudar o homem concreto que interessa à literatura, diz: “[p]recisamos, por conseguinte, de um ambiente cultural, em que junto das ciências, da história, da sociologia e da economia, o pensamento filosófico marque a sua presença como fator predominante” [ENES, José – Açores no Coração. Textos de Crítica Literária e Cultural. Ponta Delgada: Letras Lavadas Edições, 2024, p. 25]; isto é a cultura precisa do conhecimento científico e da filosofia. Uma última nota sobre a importância que o filósofo dava ao conhecimento científico: sei que José Enes gostava de ter estudado Física para se dedicar à reflexão filosófica sobre questões de Cosmologia, cujo professor que teve na Gregoriana, Peter Hoenen, tanto apreciou.
José Henrique Silveira de Brito