“A oposição inicial do Sr. Kennedy às vacinas contra a Covid preocupa os especialistas em Saúde Pública, porque isso deveria desqualificá-lo de supervisionar agências de saúde com o poder de autorizar, monitorizar e alocar financiamento para milhões de vacinas, todos os anos.”
O tema da semana: a tomada de posse do líder do mundo ocidental, o presidente dos EUA, o Sr. Donald Trump.
Apesar de ser uma Nação jovem, os EUA têm uma tradição de escrutínio sobre aqueles que servem a Coisa Pública, difícil de encontrar na Europa, mas mais ainda na Europa do Sul. A facilidade com que verificamos – do lado de cá – que cidadãos, que nunca poderiam assumir lugares no sector da Saúde (por ex.), os assumem, não pára de nos surpreender. Mais do que o escrutínio, objectivo, ao passado (ao presente e ao futuro previsível, e evidente) do servidor público o que interessa, nesta margem do Atlântico, é a facilidade com que se colocam “não assuntos” nos megafones da comunicação social clássica, ou “assuntos ao lado” nas desreguladas redes sociais.
A escolha pelo presidente Donald Trump, de Robert F. Kennedy Jr. para liderar a Saúde nos EUA, talvez seja a sua opção mais controversa, para quem observa o que está a acontecer na Nação que salvou o mundo ocidental inúmeras vezes, nos últimos 2 séculos. Isto porque, como muito bem recordou o NYT esta semana, o Sr. Kennedy apresentou uma petição à “Food and Drug Administration” (F.D.A.), em Maio de 2021, exigindo que as autoridades retirassem a autorização das vacinas anti-COVID19, e não aprovassem qualquer outra vacina anti-Covid no futuro.
Na altura em que o Sr. Kennedy apresentou a petição, metade dos adultos americanos estava a ser vacinada. As escolas reabriam e as igrejas estavam lotadas. As estimativas mostravam que o rápido lançamento das vacinas contra a Covid já havia salvo cerca de 140 mil vidas, nos EUA.
Apenas 6 meses antes, o Presidente Trump havia declarado (e muito bem) as vacinas, contra a Covid, um milagre.
A oposição inicial do Sr. Kennedy às vacinas contra a Covid preocupa os especialistas em Saúde Pública, porque isso deveria desqualificá-lo de supervisionar agências de saúde com o poder de autorizar, monitorizar e alocar financiamento para milhões de vacinas, todos os anos. Estão ainda preocupados com a forma como ele poderá lidar com uma possível pandemia de gripe aviária, que pode exigir a rápida implantação de vacinas.
Em sua defesa recorde-se que, em meados de 2023, o Sr. Kennedy disse, na Câmara dos Representantes, que havia tomado todas as vacinas recomendadas — excepto a anti- Covid.
Nas audiências de confirmação enfrentará o escrutínio das suas declarações sobre vacinas, incluindo a de que “a vacina contra a poliomielite custou mais vidas do que salvou”. O presidente Trump, nas últimas semanas, defendeu o Sr. Kennedy, depois do “The New York Times” ter noticiado que um dos advogados do Sr. Kennedy havia solicitado à F.D.A. que revogasse a aprovação, ou suspendesse a distribuição, de várias vacinas contra a poliomielite, por “questões de segurança”. Perante tal, o presidente Trump e o Sr. Kennedy expressaram todo o seu apoio à vacina contra a poliomielite.
Se confirmado pelo Senado como Secretário do Departamento de Saúde e Serviços Humanos, o Sr. Kennedy supervisionará 8 mil milhões de dólares em financiamento para o programa “Vacinas para Crianças” e terá autoridade para nomear membros para a Comissão que faz recomendações de vacinas aos Estados.
As vacinas (todas as vacinas) têm efeitos secundários raros, e houve casos destes provocados pelas anti-Covid. Mas, em Ciência, pesam-se os custos perante os benefícios.
Uma estimativa divulgada no início de 2024 mostrou que as vacinas contra a Covid, e as medidas de mitigação, salvaram cerca de 800 mil vidas nos EUA. Outro estudo demonstrou que, no final de 2021 e 2022, as taxas de mortalidade por Covid em pessoas não vacinadas foram 14 vezes superiores às daqueles que receberam a dose de reforço da vacina anti-Covid. Os cientistas também estimaram que, de Maio de 2021 a Setembro de 2022, mais de 230 mil mortes poderiam ter sido evitadas nas pessoas que recusaram as vacinas contra a Covid.
Desde o início da campanha de vacinação anti-Covid, a visão do Sr. Kennedy (de que as vacinas anti-Covid eram perigosas) esteve sempre em conflito com o presidente Trump, cuja “Operação Warp Speed” para desenvolver as vacinas foi um dos seus triunfos políticos.
Gregg Gonsalves (descendente de Madeirenses), epidemiologista da Escola de Saúde Pública de Yale, fez a seguinte comparação: o Sr. Kennedy a liderar as agências federais de saúde é como “colocar um terraplanista no comando da NASA”… comparação que não deixa de ser feliz.
A homenagem da semana: às medidas de Saúde Pública que mais vidas salvaram, nos últimos 100 anos
Em 1955 a vacina contra a poliomielite de Jonas Salk foi declarada “80 a 90% eficaz” contra a forma da doença que causava paralisia. Nas 7 décadas seguintes, a poliomielite — doença que chegou a matar ou paralisar mais de meio milhão de pessoas em todo o mundo, por ano — foi derrotada no ocidente.
Segundo o NYT, um advogado de Robert F. Kennedy Jr. pediu à “Food and Drug Administration” que revogasse a aprovação da actual vacina contra a poliomielite, uma sucessora da vacina Salk, porque ela não foi testada contra um placebo, medida que seria absolutamente desastrosa! Como algumas pessoas infectadas com poliomielite são assintomáticas, o vírus poderia espalhar-se pela população de forma despercebida, até que as pessoas começassem a ficar paralisadas.
Para um profissional de Saúde Pública isto é inacreditável: reter uma vacina que salva vidas é antiético!
A vacina Sanofi é feita usando uma técnica semelhante à que Salk usou. É uma vacina contra a poliomielite “inativada”.
Uma vacina diferente contra a poliomielite, desenvolvida pela primeira vez pelo cientista Albert Sabin, um concorrente de Salk, contém uma forma viva, mas enfraquecida, do vírus da poliomielite. A vacina Sabin, administrada por via oral, substituiu a vacina Salk em 1962, e foi usada durante décadas. Mas a vacina oral causou 8 a 10 casos de paralisia por ano, pelo que se decidiu substituí-la pela vacina actual, mais segura.
O vírus da poliomielite ainda circula em todo o mundo. Sobretudo em países pouco desenvolvidos. Países que, cada vez mais, os ocidentais visitam, em turismo ou trabalho. Fica percebido porque é fundamental (também) esta vacina…?
Mário Freitas*
- Médico, Coordenador Regional da Saúde Pública dos Açores