Os mitos têm sido um tópico recorrente nas histórias contadas ao redor da fogueira tribal e nos livros de história de povos enfrentando problemas de identidade e crises de Estado. Ecos das vozes remotas e vagas da consciência coletiva, os mitos cumpre um papel importante na formação da memória cultural. Preservam valores, tradições e narrativas históricas. Simultaneamente, podem distorcê-las através de interpretações seletivas e exageros simbólicos.
Em todas as civilizações, os mitos são essenciais na definição de identidades coletivas e visões do mundo. Em Portugal, logo após a fundação, surgiu o mito da nação com uma missão divina, protegida por Deus e encarregada de difundir o cristianismo. Esta ideia influenciou profundamente a autoperceção histórica dos portugueses. Na opinião de peritos nas ciências sociais e na filosofia e política do mito, a dualidade funcional do mito tanto une como divide as sociedades.
No seu trabalho Mythologies (1972), Roland Barthes, filósofo, observou que os mitos transformam a história em «verdades» recicladas. Na visão portuguesa, a narrativa da difusão do cristianismo justificava as conquistas coloniais, mascarando as motivações económicas e políticas subjacentes. Ao apresentar a expansão de Portugal como determinação divina, este mito distorceu o registo histórico, privilegiando a perspetiva dos colonizadores enquanto marginalizava as vozes dos colonizados. Sigmund Freud, em Totem e Tabu (1919), propôs que os mitos tendem a refletir desejos reprimidos ou conflitos não resolvidos. No contexto português, na ótica psicanalista o mito da missão divina sugere uma projeção coletiva do desejo nacional de importância global. Esta ambição foi evidente durante períodos de declínio, como após a perda de territórios coloniais, quando o mito de um passado glorioso serviu de refúgio psicológico.
Do ponto de vista sociológico, o mito frequentemente reforça estruturas de poder. A Coroa e a Igreja propagaram o mito de uma nação protegida por Deus para legitimar a sua autoridade. Com tal narrativa moldaram a memória cultural de modo a apoiar hierarquias sociais, forçando para as margens da sociedade perspetivas discordantes. Um de modo ativo, outro sobretudo conivente e nem sempre circunspeto, ambos reprimiram críticas à exploração colonial, como a escravatura sob várias máscaras. O poder enquadrou a dissidência como desafio ou rejeição inadmissível a um dever sagrado.
O uso político dos mitos enfatiza o seu poder de moldar a consciência coletiva. Benedict Anderson, historiador e politólogo, em Imagined Communities (1983)* argumenta que as nações dependem de mitos para construir identidades compartilhadas. Em Portugal, o mito da missão divina unificou a nação sob um propósito comum, ligando a sua identidade a uma grande narrativa de destino religioso. Era um objetivo que fornecia não só um sentimento de orgulho patriótico, mas também justificava a expansão colonial, incorporando-a num quadro moral.
No entanto, os mitos evoluem para refletir preocupações contemporâneas. Durante o regime de Salazar e Caetano, o mesmo mito nacional, disfarçado, legitimava o caráter ditatorial da governação e as suas políticas coloniais. Salazar usou o imaginário da Era das Descobertas para promover o logro de uma «nação pluricontinental», apresentando os territórios coloniais como «províncias ultramarinas», partes integrantes de um império português sancionado por Deus. Foi um exemplo da manipulação dos mitos para reforçar agendas políticas, distorcendo a memória cultural conforme as necessidades dos detentores do poder.
Ao mesmo tempo, os mitos inspiram a resistência e reforma. Os movimentos de libertação nas antigas colónias portuguesas amiúde reinterpretaram os mitos coloniais para contestar a legitimidade invocada por Portugal. Por exemplo, a recontextualização do cristianismo em temos de libertação em vez de opressão mostra como mitos recuperados empoderam grupos oprimidos.
A natureza dual dos mitos – preservar e distorcer a memória cultural – exige uma abordagem crítica à sua interpretação. Mircea Eliade, historiador e filósofo, em The myth of eternal return: Cosmos and History (1959)*, lembra-nos que os mitos fornecem padrões intemporais para a compreensão da existência humana, mas devem ser contextualizados dentro das suas configurações históricas e culturais. No caso a que me refiro, o reconhecimento das raízes históricas e das distorções do mito da missão divina permite uma compreensão clara do seu legado cultural e político.
Numa época de globalização e crítica pós-colonial, os mitos da missão divina de Portugal continuam a moldar a sua identidade nacional, mesmo quando reexaminados e contestados. O empenho com tais mitos, não preclude, porém, honrar o seu papel na preservação da memória cultural enquanto se expõem distorções que obscurecem ou adulteram a verdade. Como observou Roland Barthes, os mitos não são relíquias do passado. Constituem sistemas vivos de sentido, capazes de evoluir para atender às necessidades das sociedades contemporâneas.
Manuel Leal
*Ano da publicação nos EUA.