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José Enes: o filósofo e o cidadão (Parte IV)

Conheci pessoalmente o Prof. José Enes no início dos anos noventa, numa vinda do filósofo a Braga, e iniciámos uma amizade sentida e vivida como se tivesse começado muito antes. Da minha parte, tinha por pontos de partida referências bibliográficas e admiração pela obra. São para mim inesquecíveis as longas conversas tidas nessa altura em minha casa ao serão, em que falávamos e discutíamos sobre tudo, desde questões mais ligadas à História da Filosofia como, por exemplo, à questão antropológica nas obras de Heidegger, São Tomás ou Lévinas, às problemáticas ligadas ao sentido do Ser, ou à questão da fundamentação da moral, temas centrais na minha lecionação na Faculdade de Filosofia da Católica, em Braga.
Os nossos temas de discussão e debate aprofundado estendiam-se às problemáticas ligadas à Política, Geo-estratégia e Política de Defesa, não fosse o Professor uma pessoa interessadíssima nestas matérias e sobre as quais escreveu e publicou, estando boa parte desses escritos reunida em Portugal Atlântico. Estudos de Fenomenologia Política [Lajes do Pico: Companhia das Ilhas, 2015 (PA)]; além disso, fundou, na Universidade dos Açores, o Centro de Estudos de Relações Internacionais e Estratégia. Aliás estes seus interesses já se tinham manifestado nas Semanas de Estudos dos Açores.
Numa das nossas conversas, perguntei-lhe sobre o regime autonómico e manifestei-lhe a minha surpresa pela dimensão da estrutura político-administrativa da Região. Percebi imediatamente que tinha tocado num tema que o entusiasmava. A resposta foi uma longa lição. José Enes descreveu minuciosamente a importância geográfica das ilhas como ponto fulcral para a navegação à vela, lembrando o apoio que a carreira das Índias tinha em Angra do Heroísmo. Depois expôs a importância estratégica dos Açores no Atlântico Norte, como ponto de apoio para a ligação entre a Europa e as Américas. Daqui passou para a relevância da posição geoestratégica das ilhas, o que fazia delas pedra angular em caso de guerra. Mas tudo isso com o recurso a conhecimentos de toda a ordem. Foi uma lição inesquecível.
Para o filósofo, o conhecimento dessa História era importantíssimo para pensar e construir a autonomia da Região. Uma das ideias com que fiquei foi a de que o Professor considerava que a estrutura da organização político-administrativa gerada pela autonomia tinha como modelo a estrutura organizativa da República, arquitetura pesadíssima que acabaria por consumir recursos insustentáveis. Num texto inédito, incluído em Portugal Atlântico com o título “A Autonomia Regional na Viragem da Década 1980-1990” (PA, 257-260), José Enes considerava que, se não se repensasse a autonomia, a estrutura político-administrativa e a economia, “a esperança de um futuro melhor e a promessa de uma sociedade insular mais próspera(…) não estão garantidas” (PA, 259).Mesmo ao nível das estruturas físicas que a autonomia tinha possibilitado pôr de pé, no texto “Açores: que Autonomia para o Século XXI” (PA, 265-271), depois de mostrar a sua admiração pelas conquistas alcançadas pela autonomia iniciada em 1976, comenta: “(e)m contrapartida, os factos continuam a revelar a irracionalidade de algumas destas infraestruturas e a consequente impossibilidade de uma manutenção rentável” (PA, 266). Quem lê hoje a imprensa açoriana fica com a impressão de que os receios que os textos citados referem se vão concretizando; isto é, o que o Professor previu na década de 90 vê-se hoje a olho nu.
A segunda parte do livro Portugal Atlântico (PA, 193-290), que leva o título de “Os Açores e a Autonomia Regional”, reúne oito textos em que o autor se debruça sobre a autonomia da Região e que, em meu entender, deviam merecer particular estudo e reflexão a todos aqueles que se interessam pelos Açores e, de um modo particular, aos atores políticos açorianos; deviam ser de leitura obrigatória, de estudo aturado e sujeitos a intenso debate. José Enes, um filósofo de primeira água, não andava nas nuvens e conhecia o Açores como poucos. Tinha ideias muito claras sobre a ilhas como um todo e cada uma delas em particular, fruto de um conhecimento profundo da História da Região, do antes da autonomia e da construção desta nova realidade política em que viveu ao longo de vários anos. Por outro lado, tinha um pensamento estruturado sobre a política e sobre o Estado. O que pensou e escreveu sobre a realidade açoriana, ajuda-nos a compreender melhor a realidade da Região e neles, por certo, os nossos políticos poderiam encontrar ajuda para melhorar a vida política, social e económica das ilhas.
Sobre o tema da política, vou mais longe; os estudos reunidos em Portugal Atlântico não têm interesse apenas para os políticos açorianos, mas para todos os portugueses que se interessam pela política. A primeira parte da obra, “Atlanticidade de Portugal e Relações Internacionais” (pp. 38-191), reúne nove textos que deveriam ser lidos por quem se interessa pela política, e de um modo especial pelos atores políticos portugueses. Para dar uma ideia sobre alguns temas tratados, cito apenas o título de três ensaios: “Relações Internacionais – Soberania e Segurança” (91-109), “A Atlanticidade de Portugal e os Açores” (121-140) e “Complexo Sebastianista no Comportamento Político” (141-168).
Voltei a estar com o Prof. José Enes em Braga bastantes anos mais tarde quando, presidindo à Comissão Externa para a Avaliação dos Cursos de Filosofia das Universidades Portuguesas, missão muito delicada, visitou a minha Faculdade por duas vezes. Nessas duas visitas, lamentavelmente, os nossos encontros limitaram-se a breves momentos entre reuniões; o contexto não aconselhava muita proximidade entre o presidente da Comissão e o professor secretário académico da Faculdade visitada, cargo que eu exercia nessa altura.
Termino esta quarta e última crónica sobre o Prof. José Enes com um lamento: sei que vários amigos o incentivaram a escrever um livro de memórias. Pelo que sei, tal não aconteceu. Foi pena porque, para além de uma obra filosófica de primeira água que nos deixou, teríamos à disposição o retrato de uma vida longa e rica de alguém excecionalmente dotado, vivida numa época histórica riquíssima, em que o mundo mudou a uma velocidade vertiginosa.

José Henrique Silveira de Brito

Braga, fevereiro de 2025

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