As transferências do OE para as RAs têm como propósito dotar estas regiões dos recursos suficientes para desempenharem as funções de Estado que lhes estão reservadas, como, por exemplo, as da educação e da saúde, assim como os recursos necessários para a promoção da convergência de níveis de desenvolvimento para os padrões nacionais e europeus1. O princípio fundamental é que as Regiões devem ter recursos suficientes para desempenhar adequadamente todas as funções sob a sua responsabilidade. Princípio similar é adotado na determinação das transferências para as autarquias, incidindo, naturalmente, sobre competências diferentes.
Entre 1976 e 1998 as transferências eram determinadas de forma discricionária, em negociações anuais entre governos, sem qualquer regra orientadora predeterminada. Resultava desta abordagem a incerteza permanente quanto aos valores que seriam admitidos em cada ano, prevalecendo os humores políticos de cada momento orçamental.
A LFRA veio colmatar esta incerteza fixando uma regra que permitia quantificar as transferências que caberiam a cada Região.
Na versão inicial da LFRA2, as transferências eram determinadas por uma primeira parcela base e por uma parcela designada de fundo de coesão, indexada à primeira3. O valor a transferir era, portanto, determinado pelo valor desta primeira parcela e por indexantes fixos utilizados para determinar a segunda parcela.
A parcela base das transferências era determinada, para cada região, autonomamente, por uma fórmula baseada na capitação do PIDDAC (Programa de investimentos públicos nacional), com a salvaguarda de que as transferências de cada ano não poderiam ser inferiores às do ano anterior, corrigidas da taxa de crescimento das despesas correntes do OE. O pressuposto implícito era que o esforço nacional de investimento seria o referencial adequado para determinar as transferências para cada região.
Com efeito, a fórmula foi sempre menos vantajosa do que a cláusula de salvaguarda, razão pela qual a atualização das transferências acabou sempre por ser determinada pela taxa de crescimento das despesas correntes do OE.
A receita do IVA afeto a cada Região manteve-se como a capitação do valor nacional, o que implicava uma transferência implícita considerável.
A lei original não estabelece qualquer ligação entre a capacidade fiscal própria da região com as suas necessidades de despesa tendo em consideração padrões de referência da intervenção pública na prestação de serviços públicos e na realização dos investimentos necessários, muitos dos quais determinados por leis nacionais como, por mero exemplo, a aplicação de salários mínimos na administração pública. A regra estabelecida não tinha qualquer capacidade de ajustamento das transferências a circunstâncias novas, conjunturais ou estruturais. Prevaleceu como base as transferências concretizadas em 1998, antes da entrada em vigor da lei.
A primeira revisão da LFR acontece em 2007 4, oito anos depois da lei original. Nessa altura é introduzida uma alteração fundamental na determinação das transferências base que deixam de ser apuradas para cada região de forma independente e passam a ser determinadas em dois passos: num primeiro passo estabelece-se o plafond de gastos do OE como sendo um valor de referência inicial (fixado em 2007 e ajustado para o facto de a receita do IVA passar a ser o realmente cobrado em cada região) 5, ajustado anualmente pelo menor valor de dois indicadores – a variação do PIB no período t-2 e a taxa de crescimento da despesa corrente do OE 6; num segundo passo o plafond do OE é repartido entre as duas regiões com base numa fórmula que tem em linha de conta o peso populacional, o peso de população jovem, o peso da população idosa, um fator de insularidade, um fator fiscal e um outro fator de ajustamento.
A parcela do fundo de coesão passa a ser uma percentagem deste valor base indexada pelo diferencial de nível de rendimento per capita face ao valor nacional.
Recorde-se que esta alteração da lei provocou protestos veementes do governo da Madeira pelos cortes substanciais de transferências que implicou para aquela Região. No primeiro ano de aplicação, a alteração da lei foi marginalmente positiva para os Açores.
Mais uma vez, em nenhuma parte, a lei estabelece ligação entre a capacidade fiscal própria da região com as suas necessidades de despesa para acompanhar os padrões nacionais de serviços públicos.
Em 2010, a lei é alterada por uma iniciativa da Assembleia da República, mas suspensa logo de seguida nas alterações essenciais, tendo em consideração as dificuldades financeiras do país e o evento climático extremo que afetou a Madeira em Fevereiro, exigindo apoios públicos avultados 7.
A última revisão da LFRA acontece em 2013, já lá vão 11 anos, durante a execução do programa de recuperação económica e financeira de Portugal, com um pendor eminentemente restritivo, impondo a redução dos níveis máximos de diferencial fiscal de 30 para 20%, revertido em 2014, e voltando a adotar o critério do IVA por capitação, mas agora ponderado em função do nível de redução das taxas.
Manteve-se a metodologia de primeiro determinar o plafond de gasto base de transferência no OE com distribuição deste valor, entre as duas regiões, em função de uma fórmula com os mesmos indicadores, mas com ponderadores diferentes. O fundo de coesão manteve-se como antes, mas com ponderadores diferentes. O valor de plafond de transferência base para 2014 foi fixado em 352 500 000€ para as duas regiões.
Manteve-se, no essencial, o modelo de 2006, com um novo plafond e com novos ponderadores para a determinação do fundo de coesão.
A regra de fixação do plafond acabou por produzir um resultado curioso em 2022, ainda em plena pandemia. Numa altura em que as Regiões necessitavam de mais recursos receberam menos transferências (-20 milhões no caso dos Açores) por aplicação da regra do menor da variação do PIB ou da despesa corrente do OE, por o PIB nacional ter tido um crescimento negativo em 2020.
Novamente, em nenhuma parte a lei estabelece ligação entre a capacidade fiscal própria da região com as suas necessidades de despesa, limitando-se a repartir entre as duas Regiões um valor predeterminado, sem qualquer relação entre necessidades de despesa e capacidade fiscal.
Com efeito, nunca em todo o percurso autonómico se chegou a um cálculo claro do custo padronizado do exercício das responsabilidades públicas executadas pelas regiões e das suas reais capacidades fiscais para se determinar quanto seria necessário e justo transferir para que as autoridades regionais pudessem exercer adequadamente e em equilíbrio financeiro as suas responsabilidades. A crise económica de 2008-2012, e a pandémica de 2020-2022, acentuam este problema ao transformarem a estrutura de despesa publica, muita dela condicionada por decisões nacionais, sem o devido ajustamento das transferências. Não admira por isso que, paulatinamente, as finanças públicas regionais se vão degradando.
Onze anos da última versão deste modelo é manifestamente muito tempo para que não existam reflexos financeiros evidentes.
A falta de um mecanismo de reconhecimento das alterações da estrutura das despesas públicas ao longo do tempo é uma falha da LFRA desde a sua primeira versão. Na falta de um apuramento detalhado dos custos reais de prestação de serviços e dos investimentos necessários e a sua comparação com a capacidade fiscal própria, esta lei está condenada a não cumprir o desiderato de assegurar às RAs os recursos de que necessitam para desempenhar as suas funções, derrotando a própria razão de ser da lei.
Não faz também sentido o sistema de orçamentação em dois momentos, instituído a partir de 2007, em que num primeiro momento se encontra um plafond de despesa do OE e num segundo se utiliza uma fórmula estática para repartir o valor entre as duas regiões como se, para o Estado só importasse a delimitação das despesas orçamentais com as RAs, independentemente das necessidades específicas de cada uma.
A resolução desta deficiência da lei passa por contabilizar corretamente as necessidades de despesa de cada Região face às suas responsabilidades de despesa e as respetivas capacidades fiscais, considerando cada uma das regiões separadamente.
1 Artº 1 e nº 2 do artº 5º da Lei nº 2 de 2 de setembro de 2013
2 Lei nº13/98 de 24 de fevereiro de 1998.
3 Artºs 30 e 31 da Lei nº13/98 de 24 de fevereiro de 1998
4 Lei nº1 de 2007.
5 Valor fixado em 2007, conforme o no 5 do artº 37 da lei nº1/ 2007 (5 – No ano de entrada em vigor da presente lei, o montante das verbas a inscrever no Orçamento do Estado para o ano t é igual ao montante inscrito no ano t-1 multiplicado pelo factor 1,5”.
6 Nºs 3 e 4 do Artº 37da lei nº1/2007.
7 Cerca de 900 milhões de euros.
Mário Fortuna