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A América está doente

Desde criança habituei-me a ouvir minha mãe falar da América com o maior entusiasmo e simpatia. Falava, escrevia e lia em inglês revistas e livros que as antigas colegas do High School frequentemente lhe enviavam, com a maior fluência e correção e ensinava os filhos a aprenderem aquela língua, nas situações mais diversas sobretudo às refeições.
Mais tarde, quando comecei a conhecer a sua biografia, compreendi que a América estava-lhe no mais íntimo da sua vida, fazia parte da sua identidade cultural, e não fora em vão que desde bebé e até aos 18 anos lá vivera, de onde regressou, forçosa e penosamente, devido à doença do pai.
É neste contexto familiar, em estreita ligação com os EUA que nos criámos. Minha mãe, durante décadas, leu, traduziu e respondeu a cartas de quem lhe batia à porta, contando os êxitos de quem partira e as dificuldades dos que ficaram, também à espera da “carta de chamada” para realizar o “sonho americano”.
Os tempos entretanto mudaram, mas as dificuldades dos açorianos permanecem e confrontam-se com os êxitos dos “americanos”.
Nos tempos de crise, foi para lá que partiram muitos açorianos, legal ou ilegalmente. Uns conseguiram legalizar a situação, e até naturalizar-se, não sem antes terem passado por grandes apoquentações e terem despendido enormes somas de poupanças cobradas por advogados sem escrúpulos. Outros arriscaram ficar indocumentados, cuidando de não infringir as leis. Uns e outros afirmam-se orgulhosos do país onde residem e dão-lhe o melhor de suas vidas.
O seu exemplo é o de milhões de emigrantes estrangeiros em terras do Tio Sam, que por isso se transformaram no país amigo de quantos acolheu.
Os drásticos processos de deportação em curso, decididos pelo novo inquilino da Casa Branca, constituem, por isso, uma afronta à dignidade humana. Ou como afirma o Papa Francisco na carta enviada esta semana ao Episcopado norte-americano, “O ato de deportar pessoas que, em muitos casos, abandonaram suas terras por motivos de extrema pobreza, insegurança, exploração, perseguição ou por grave deterioração ambiental, fere a dignidade de muitos homens e mulheres, de famílias inteiras, e os coloca num estado de particular vulnerabilidade e desamparo.”
Nos últimos dias, os Bispos dos EUA e dirigentes de outras igrejas cristãs e não cristãs tem-se manifestado contra as intromissões em templos, escolas e instalações em busca e perseguição a cidadãos migrantes indocumentados e refugiados, violando a lei da liberdade religiosa. Está criado um clima de medo, mesmo em cidadãos legalizados, devido às denúncias.
Ciente desta situação, o Papa exorta “todos os fiéis da Igreja Católica e todos os homens e mulheres de boa vontade a não cederem a narrativas que discriminam e causam sofrimento desnecessário a nossos irmãos e irmãs migrantes e refugiados”.
A mensagem do Papa dirige-se a um apreciável número de fiéis e de sacerdotes que concordam com as novas políticas migratórias. Daí afirmar que “todos os fiéis cristãos e pessoas de boa vontade são chamados a considerar a legitimidade das normas e políticas públicas à luz da dignidade da pessoa humana e seus direitos fundamentais e não o contrário.” E acrescenta: “um verdadeiro Estado de Direito é verificado precisamente no tratamento digno que todas as pessoas merecem”.
Francisco critica também “qualquer medida que identifique, tácita ou explicitamente, a situação ilegal de alguns migrantes com a criminalidade”, mensagem repetida na campanha eleitoral do presidente republicano e que permanece, infelizmente, muito arreigada em alguns dos nossos “americanos”. Segundo eles afirmam nas redes sociais, o cumprimento da lei é um bem maior que deve ser cumprido, custe o que custar, doa a quem doer.
Em algumas comunidades, afirmam alguns observadores conhecedores da comunidade imigrante, nota-se também uma velada atitude discriminatória para com cidadãos açorianos indocumentados, acusando-os de afetarem a respeitabilidade conquistada junto das entidades norte-americanas.
Perante tudo isto o Papa previne: “o que se constrói com base na força e não com base na verdade sobre a igual dignidade de cada ser humano, começa mal e acabará mal.”
Afirmei, recentemente, a necessidade de as autoridades civis e eclesiásticas, em consonância com instituições norte-americanas e da nossa diáspora, desenvolverem ações concertadas para impedir a deportação de imigrantes indocumentados.
Do lado de cá, percebi que a atitude é de esperar para ver. Foi afirmado publicamente, que alguns açorianos estão a regressar, com receio dos impedimentos resultantes da deportação. As condições que encontram são, certamente, piores que as que deixaram atrás, sendo de prever que os problemas sociais e os níveis de pobreza aumentarão.
A carta do Papa ao episcopado norte-americano sobre os direitos dos imigrantes, é de tal modo exigente que não se pode ficar à espera, nem ser indiferente a princípios fundamentais da dignidade da pessoa humana, que não respeitam apenas a cidadãos sul-americanos, mas também aos açorianos indocumentados.
Foi tal o impacto da mensagem pontifícia na opinião pública em geral e na administração americana que o encarregado do Programa de Deportação de Migrantes indocumentados – “como católico de toda a vida” – sugeriu que Francisco se estava a meter em matéria que não é da sua competência e que se deveria “concentrar no seu trabalho”.
Esta visão demasiado retrógrada e ultrapassada, contrária à Doutrina Social da Igreja é bem o exemplo do pensar de grande parte da Igreja Católica norte-americana e de outras igrejas cristãs.
Aos crentes e fiéis apoiantes de Trump, não lhes repugna a criação de uma controversa “task-force” e de um gabinete da Fé, destinados a combater o ódio aos cristãos americanos, como se a deportação de imigrantes sem culpa formada para a prisão de Guantanamo e para os países de origem fosse uma lei divina para manter a pureza étnica…
Ouve-se dizer que estes são tempos de mudança. Recuso tão ligeira observação.
Há valores fundamentais que devem ser defendidos a todo o custo pelos líderes e dirigentes regionais, nacionais e europeus. Deles, porém, só vem um silêncio comprometedor e uma diplomacia inoperante, temente dos poderosos deste mundo.
A América está doente e contagia o mundo.

José Gabriel Ávila*
*Jornalista c.p.239 A
http://escritemdia.blogspot.com

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