Inspirada no icónico sketch de Herman José, “Eu é que sou o presidente da junta”, proponho que façamos aqui uma inversão satírica: “Eu é que não sou o dono da imobiliária”. Porque a ser, aparentemente, estava muito melhor na vida. Num país onde o setor imobiliário registou um crescimento de cerca de 20% em 2024 – um número que salta à vista e que não parece incomodar os nossos governantes –, quem tem casas ou terrenos para vender aos estrangeiros está de vento em popa. Mas e quem precisa de casa para morar? Pois, esses que se amanhem.
O tema da habitação tem sido uma dor de cabeça para os portugueses comuns, que se deparam com preços cada vez mais proibitivos, rendas impagáveis e uma classe política que, em vez de procurar soluções para a crise habitacional, está mais preocupada em fazer bons investimentos. É que já não falamos apenas de casos isolados de governantes com interesses privados, mas de um verdadeiro caldo de conflitos de interesse num país habituado a fazer da ilegalidade legalidade.
Primeiro foi o Secretário de Estado que acabou por se demitir – não por vergonha, mas porque a pressão mediática se tornou insustentável. Sabe-se que também o Primeiro-Ministro tem interesses diretos numa empresa com ação no setor imobiliário e que poderá lucrar com as novas leis que ele próprio promoveu. Depois, a Ministra da Justiça, cujo nome deveria ser sinónimo de integridade e equidade, mas que também tem um pézinho no negócio. Juntam-se à lista ainda quatro deputados do Chega. E o que têm em comum? Todos são donos ou têm participações em empresas imobiliárias que, por um acaso muito conveniente, vão beneficiar diretamente das políticas aprovadas com o seu voto.
Aliás, se ainda restavam dúvidas sobre a direção que a direita portuguesa estava a tomar, a recente aprovação da Lei dos Solos dissipou-as. Esta medida, vendida ao povo como uma forma de aumentar a oferta habitacional, permite a construção em solo rústico e já abriu caminho para a especulação imobiliária desenfreada. Dizem que é para resolver o problema da falta de habitação, mas não é difícil perceber quem será o verdadeiro beneficiado: não são as famílias que procuram uma casa para viver.
Entre nós, um à parte, Portugal continua a descer nos rankings da transparência e a subir na lista dos países onde se vive pior com um salário médio. No último índice de perceção da corrupção, caímos nove posições, passando para o 43.º lugar entre 180 países. Poderá parecer um detalhe, mas este é um reflexo direto da forma como a nossa classe política tem conduzido os destinos do país.
Se olharmos para a história recente da política portuguesa, não é de estranhar que o setor imobiliário tenha se tornado o novo filão de ouro. Primeiro foram as empresas de comunicação, com vários políticos a saltar diretamente para grupos de media e a controlar a narrativa. Depois, as consultoras com ligações ao Brasil, que serviram de ponte para todo o tipo de negócios obscuros e bem remunerados, claro. Agora, a moda é o imobiliário.
O mais curioso é ver como o Chega, que tanto brada contra a corrupção e os jogos de bastidores, se revela tão igual aos outros partidos quando se trata de aproveitar oportunidades de negócio. Entre discursos inflamados e promessas de moralização da vida pública, quatro dos seus deputados encaixam-se na mesma fórmula: donos de imobiliárias, com interesses diretos na legislação que aprovaram.
O que fica de tudo isto é a sensação de que o país continua entregue a um grupo restrito de pessoas que, independentemente do partido que representam, sabem como tirar proveito das decisões que tomam. O cidadão comum, esse, continua a trabalhar para pagar uma renda que o obrigue a sacrificar mais de metade do salário ou a contar os tostões para um crédito à habitação que talvez nunca consiga pagar até ao fim da vida.
E enquanto a comunicação social faz o seu papel de escrutínio, os opinion makers construem já a retórica, em todos os canais televisivos e programas de opinião, feitos papagaios de imitação, de que, se continuarmos assim, a apertar o escrutínio, ninguém quererá governar e só restarão os indigentes. Mas os indigentes já lá estão, e penso que falo por muitos quando digo que grande parte daqueles a quem pagamos para estar na política podem muito bem voltar a dedicar-se em exclusivo às suas atividades profissionais, os que as têm. Ninguém sentirá falta do seu patriotismo de conveniência.
Daniela Silveira