Escrevi enquanto almoçava no restaurante do Aeroporto de Lisboa. Gosto de observar desconhecidos e de imaginar as suas personalidades e vidas, que tento desenhar por palavras. Uma forma de entretenimento como outra qualquer.
Sentou-se a comer duas mesas à minha frente. É bonita, é morena, de cara afusada, cabelos a cairem-lhe abaixo dos ombros. Faz questão em ser carrancuda quando se sente observada. Noto que não está a ver o mundo à sua volta, as pessoas que conversam, que riem, que convivem, aparentemente despreocupadas. Tento interpretar-lhe a vida através do rosto. Está aqui apenas fisicamente, como um capataz descontente inquieto por entregar o manche das chaves ao patrão e ir-se embora para casa. A senhora está divorciada, quase aposto. Ou estará em breve. Tem cara de traída. Ou não será de mãe preocupada com os caminhos errados de uma filha adolescente? Quanto mais a observo, mais me inspiro, e não quero que se vá embora sem que a tenha interpretado melhor. Está presa à vida, à vida que não queria, mas que lhe saiu em sortes. O marido, ou companheiro, ou o tirano, estará longe, mesmo assim controla-a. “Ele está aqui ao meu lado”, é o que ela me quer dizer. “Não olhes para mim. Eu sei que em tempos fui “gira”, que fui livre, mas agora não. Estou perdida para a vida, tão nova que sou, e , pior, habituei-me a gostar de estar perdida. Entreguei de modo próprio a alma ao diabo.”
Puxou os óculos para os olhos e virou-se ao telemóvel. E mastiga e mastiga o melão que escolheu para sobremesa. Parece-me bem mais aliviada após a mensagem que enviou e recebeu. O rosto preocupado, mortiço, já dá mostras de querer reviver. Tira os óculos, olha zangada para o chão do canto do restaurante, como se o chão também a maltratasse. Que incógnita! Mas esta mulher é uma navegante perdida no mar da indiferença. Esta mulher debulha-se em lágrimas que não correm. Apetece-me ir ali abraçá-la. Se calhar, jamais a avistarei, mas desejo-lhe a melhor sorte do mundo.
João Gago da Câmara