O cheiro da sopa de funcho era intenso e eu que não gostava nada, nem de a cheirar. Mesmo estando dentro do tacho, coberta com dois abafadores e fechada na cesta de vimes que eu levava, já com o braço dolorido, não impedia que o odor me atormentasse o estômago. Era o ritual de todas as tardes, tanto eu como os meus irmãos éramos encarregados de ir levar o almoço ao Pai, ora um ora outro conforme os horários escolares ou as disponibilidades do momento.
De certeza que era feriado para os americanos da Base das Lages, à porta da oficina de estofador do Mestre Tailhinha estavam duas grandes “espadas”, daqueles descapotáveis Ford ou Chevrolet que nos faziam cair os olhos de admiração e, mais abaixo, junto do Seminário, certamente que encontraria mais alguns. A cidade e o seu pequeno comércio iam ter um movimento mais colorido, o aroma das “gamas” e das roupas americanas atenuariam os maus cheiros provenientes da passagem de alguma carroça com um cavalo aflito dos intestinos. E a rapaziada dos Quatro Cantos e do Corpo Santo aproveitava logo para os perseguir e estender a mão recitando a já estudada cantilena… “Hei Jóne, uane scude?”, esperando por eles nos lugares estratégicos que eram as casas das meretrizes da Rua do Morrão ou à porta do “Moka”, onde uma situação de pancadaria era sempre bem-vinda, recreavam-se nas nossas ruas as cenas que tanto gostávamos de ver nas cowboyadas das matinés de sábado na Recreio ou na Fanfarra.
Deu-se o encontro mesmo ali em frente do palacete dos Baldayas, de dentro de um enorme carro saíram dois casais, elas loiras, espampanantes, com longos e finos cigarros nos lábios, eles fortalhaços, cabeças quase rapadas, botas de cowboy a matracar na calçada. E riam-se! Gargalhadas sonoras que me irritaram ainda mais que o cheiro da sopa de funcho porque me apercebi que eu era o alvo da galhofa, como que estivessem a prever que seria o primeiro a pedinchar por umas moedas. A desafiar-me, com o sorriso maldoso disfarçado pelo charuto que trincava entre os dentes, um deles mete a mão ao bolso e mostra-ma cheia de reluzentes moedas, qual baú do tesouro do pirata Barba Negra ali à minha disposição. E que jeito que aquele dinheiro me daria, seria a maneira de ir comprar umas revistas do Tio Patinhas, uns “Mundo de Aventuras” ou então investir em mais uns “repetidos” para tentar completar a minha caderneta das equipas de futebol, podia ser que me saísse o número da bola! Mas aquelas gargalhadas fizeram-me regressar à realidade e segui o meu caminho sem mesmo dar mostra que tinha sido incomodado pelo gesto desafiador do gringo.
Na Loja, depois do beijo a pedir a bênção ao meu Pai, fiz como de costume, depositei a cesta do almoço junto do armário do queijo de peso e preparei-me para atender algum cliente. Os americanos é que não me deixavam em paz, ficaram uns instantes pespegados a olhar para dentro, o que fez com que meu Pai ficasse intrigado… “Que é que fizeste a esta gente?” Que não fiz nada, contei a estória em poucas palavras, um deles queria dar-me dinheiro, mas eu não lhe toquei. A resposta foi ainda mais sucinta do que a minha explicação… “Fizeste bem.” E pronto, caso encerado, era assim o meu Pai, com poucas palavras dizia muita coisa.
Aquela situação levou uns dias a atormentar-me, quiçá por não ter conseguido comprar os livritos que continuava a namorar na montra da Casa das Utilidades e só vim a compreender melhor a questão uns dias mais tarde. Deveria ser tempo de verão porque nessa altura do ano é que me era permitido permanecer na Loja até mais tarde já que em época de escola as noites eram passadas a fazer as contas e as cópias do trabalho de casa. A camioneta da carreira da EVT que saía às 7 da tarde na última viagem para as freguesias já tinha largado do Largo Prior do Crato de forma que os fregueses na Loja eram bem poucos, talvez algum soldado do BI17 que vinha mudar de roupa antes de regressar ao quartel e pouco mais. Foi nessa tarde que fui incumbido de servir o Mestre Rita e o Mestre Salgueiro, dois experimentados estucadores da construção civil, peritos na arte de revestir com gesso e cal-virgem as paredes e os tetos de muitas casas da nossa cidade, além de serem quase vizinhos e também amigos de meu Pai.
“Duas meias-bolas de vinho de cheiro e TRÊS suspiros”, pediu o Mestre Rita, no seu cantarolar faialense. A compra dos suspiros, aqueles doces feitos de açúcar em forma de pirâmide enrolada, eu já havia entendido. Os pescadores da Madeira que tripulavam as traineiras da Tercon também tinham esse costume, como o vinho de cheiro regional é mais fraco em teor de açúcar, pois então faz-se acompanhar com um doce e fica mais parecido com o vinho tinto do Continente ou ao vinho da Madeira. Mas… TRÊS suspiros? “O senhor quer que embrulhe para levar para casa?” ainda perguntei, ao que o Mestre Rita respondeu que um era para mim. Que não, muito obrigado, respondi, a lembrar-me de conversas que ouvia a meu Pai, o caixeiro nunca deve partilhar com os clientes e entrar em rodadas de ora agora pagas tu agora pago eu. Só que Mestre Rita insistiu e foi quando Ti João se apercebeu do sucedido e disse-me—“Aceita o suspiro, uma pessoa não deve ser pobre e soberbo, pobre e soberbo é um cão cheio de morrinha”. E eu que já ouvira da boca dele aquela frase tantas vezes e nunca tinha ainda entendido bem o seu significado! Com o aval paterno lá papei o suspiro em dentadinhas bem pequenas para fazer render e saborear principalmente o interior com o açúcar a apegar ao céu da boca. O Manuel “Sacristão” da padaria da Rua da Garoupinha era exímio na fazedura desses deliciosos doces.
Ao anoitecer, no regresso a casa onde o jantar nos esperava, quando passávamos no local exato onde havia sido incomodado pelos americanos uns dias antes, enchi-me de coragem e questionei o porquê da diferença de atitudes, num dia fui elogiado porque não aceitei os dinheiros dos estrangeiros, mas hoje tinha sido criticado por não aceder à oferta do Mestre Rita…. “Sabes, João, a diferença está na maneira como se dão as coisas. Quando te oferecerem algo e que vejas que te está a ser dado de boa-fé, deves aceitar e agradecer. É tanto importante o saber dar como o saber receber, uma pessoa não deve ser pobre e sob…” Com a simplicidade dos meus nove ou dez anos daquela altura aquelas palavras ficaram para sempre marcadas na minha memória. Parece-me que não trocámos mais alguma conversa no resto da subida do calvário da Miragaia, a noite não estava fria e a lua brilhava na nesga da baía que avistávamos à porta de casa. Mal sabia eu o que me esperava à mesa para jantar… um fumegante prato de sopa de funcho!
João Bendito
Hayward, Ca., 18 Maio 2010.