Lembro-me bem do som metálico que ecoava na minha infância, nos anos 90, sempre que o ouriço azul era atingido e, num instante, dezenas de anéis dourados se espalhavam por todo o lado, como sonhos caídos, difíceis de recuperar. Esse “Plim!” agudo e aflitivo, a denunciar uma súbita fragilidade, ressoa hoje num mundo saturado de estímulos, onde a infância e a adolescência se desfazem diante dos nossos olhos.
Aos jovens ouriços destes dias opõe-se um império digital de convites incessantes: jogos, vídeos, apostas, redes sociais, pornografia, tudo à distância de um gesto, sempre disponível, na palma da mão. Crianças e adolescentes isolam-se numa rotina sem pausas, hipnotizados pelo encanto dos ecrãs. A Internet, as redes sociais, os jogos, sempre à espreita: “só mais um nível”, “só mais uma roleta”, “só mais um post”, “só mais um vídeo”, “só mais um scroll… infinito”. Aqui, as vidas pseudo-perfeitas dos influencers estilhaçam as expetativas dos mais vulneráveis, sem a mínima hipótese de alcançarem tamanha perfeição, fama ou fortuna. Ficam os miúdos ainda mais reféns dos ecrãs e o mundo real mais aborrecido, lento, sem brilho, sem cor. Sem sentido.
“Plim!”
Nesse quadro de isolamento social, a obesidade avança, crescendo lado a lado com horas de inércia à frente dos ecrãs. O corpo habitua-se ao mínimo esforço físico e fica à espera de que tudo aconteça de imediato, pronto, sem as resistências normais da realidade. Ou, então, é a magreza extrema ou os corpos esculpidos a talhe de esteroides, copiando as imagens, retocadas digitalmente, dos novos semi-deuses.
As apostas emergem com a subtileza de um veneno camuflado. Sob cores vivas e slogans de diversão em toda a parte, instila-se a mecanização do risco, com loot boxes e microtransações que acenam com mais prémios, mais emoção, mais tudo… Cresce-se no imediatismo, na ilusão do dinheiro fácil e a semente da adição germina, forte e feio, até não sobrar nada.
Entretanto, a pornografia espalha-se sem filtros. Oferece uma falsa conexão, fácil, reduzida ao prazer fugaz e sem laços afetivos. Apaga-se a descoberta partilhada, deixam-se de lado os caminhos da relação e os afetos ficam amarrados a fantasias que a vida real não consegue replicar. Seguem-se a frustração, a violência e o trauma nas relaçõespossíveis no mundo real.
Na Geração Z, os cérebros hiperdopaminados já pouco resistem ao apelo do próximo clique, da próxima aposta, dos reels, likes, friends e followers… Surge então a ansiedade, parasitária, que se entranha aos poucos mas corrói até à medula. Já não espantam os números de depressões, de diagnósticos de PHDA e os comportamentos suicidários nos jovens. É a demanda infinita pelo estímulo seguinte, que se desfaz, como os anéis dourados à deriva, quando a vida real simplesmente acontece.
“Plim!”
Falta o convívio genuíno entre pares, falta o toque, faltam as brincadeiras tão simples quanto essenciais, falta explorar o mundo, onde erros, quedas, feridas e tropeções recorrentes são fatores de crescimento e não verdadeiros perigos. Em vez disso, as crianças avançam sobre areias movediças, desprotegidas, prestes a cair ao primeiro obstáculo, real ou virtual, na proximidade da vida adulta.
“Plim!”, outra vez. E todos os anéis dourados se perdem num sopro. É o Sonic ferido que, num grito derradeiro, profetiza: sem mundo real, afetos e relações, tentativa e erro, uma boa dose de frustração e uma ou outra conquista, não há saúde nem equilíbrio possíveis.
Game Over.
Não há vidas extra na vida real. Lamento. Ainda assim, o desfecho não está traçado. Podemos parara montanha-russa e, numa atitude de revolta, desapertar o garrote, sair deste frenesim e recuperar a cadência lenta e serena do mundo concreto, onde os afetos se tocam com alma, a proximidade ganha relevo e onde há pausas, silêncios, ócio, dúvidas, relações verdadeiras, amor, dor… e, sobretudo, onde há possibilidades de sentido.
É urgente aprendermos a enfrentar estes novos loopings, para que não seja tarde demais para os jovens ouriços azuis que correm agora por aí.
João Mendes Coelho*
- Médico psiquiatra e adictologista