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Camões, qual a ortografia?

A definição da ortografia a adotar na reedição d’ Os Lusíadas, da obra lírica, elegíaca e satírica, das peças de teatro e das cartas, deverá constituir um dos objetivos primordiais das comemorações do V.º centenário de Camões, a fim de conseguir a maior repercussão em todos os países de língua portuguesa

O V.º centenário do nascimento de Camões é uma efeméride que não se deverá limitar aos ajustes de contas, às interpretações circunspectas de eruditos agarrados ao pescoço dos pelicanos e a outras questões de interesse restrito. O principal objetivo destas comemorações deverá consistir numa aproximação o mais extensa possível d’ Os Lusíadas, da obra lírica, elegíaca e satírica, das peças do teatro e das cartas, patrocinando uma reedição destinada ao público mais diversificado e de todos os países de língua portuguesa.
É ponto assente que os primeiros biógrafos e os primeiros comentadores de Camões não registaram, com o devido rigor, as datas e os factos indispensáveis para um conhecimento inquestionável do dia e do local do nascimento; das origens familiares e da extensão que tiveram na sua vida; dos estudos que fez e onde os fez; das razões que motivaram o exilio no Ribatejo e a deslocação para África e para o Oriente. E mais ainda: a indicação do dia em que faleceu, as circunstâncias da morte e o sitio onde ficou sepultado.
Assim se construíram inúmeras versões tendenciosas, destinadas a obter exaltações nacionalistas, efeitos políticos e finalidades religiosas. Muitas destes propositados embustes foram desmascarados por Aquilino Ribeiro, na obra Camões Fabuloso e Verdadeiro – cuja última edição tive a honra de prefaciar – e onde, capitulo a capitulo, procurou esvaziar os mitos, os lugares comuns, as ideias convencionais que se consolidaram, ao longo dos séculos.
Mas regressemos a um dos objetivos fundamentais neste centenário: alcançar a maior repercussão da obra de Camões. Qual a ortografia a adotar nas edições destinadas ao grande público? Está mais do que provado que, em 1572, as duas edições d’ Os Lusíadas se encontram repletas de gralhas e outras imperfeições de composição. O próprio Camões procedeu, em 1572, a uma revisão, mas não contemplou todos os erros detetados.
Numa longa entrevista que me concedeu, para o Diário de Notícias, David Jackson, professor da Universidade de Yale e estudioso de renome internacional de Camões pormenorizou os resultados das pesquisas que realizou ao consultar 34 exemplares d’Os Lusíadas, editados em 1572. Ao contrário do que até então sucedera a investigação não se limitou a Portugal e ao Brasil. Estendeu – se a outras bibliotecas públicas e privadas dos Estados Unidos, da Inglaterra, da Itália, da Espanha, da França e da Alemanha. Ao todo encontrou mais de duas mil diferenças.
Feitas as devidas correções e ao estabelecer o texto na sua autenticidade, é inevitável perguntar, uma vez que continuam ao rubro as polémicas em redor do Acordo Ortográfico de 1990 qual será a ortografia a adotar, numa edição de 2025, que não se pretende monumental, nem faustosa como, por exemplo, a do Morgado Mateus, mas que se destine a uso quotidiano e que sirva, obviamente, para estudo e consulta de estudantes?
Até agora o Acordo Ortográfico de 1990 – que pretendia atingir uma unificação em todos os países de língua portuguesa – falhou no seu objetivo primordial. Dividiu ainda mais as regras em vigor nestes países, criando três normas ortográficas: a do Brasil, a de Portugal e a dos restantes países africanos e asiáticos que não implantaram o Acordo, apesar de o terem subscrito.
Quando haverá um consenso básico entre linguistas, filólogos, académicos, jornalistas, escritores e tradutores? Um consenso, também, alargado a outras áreas universitárias e aos sectores políticos e empresariais das sociedades dos vários países de língua portuguesa? A situação é tanto mais inaceitável quanto as palavras em Camões têm o poder fascinante de intensificar o diálogo, promover a convivência aberta e plural, resistir aos extremismos políticos e partidários; enfrentar o discurso de ódio e violência que, a cada instante, se acentua nas redes digitais.
Camões invocou a «paz áurea, divina» e «a paz angélica e dourada». Mas perante «as astutas traições e enganos vários» não se deve hesitar em remover «a ferrugem da paz». Ganhou energia para celebrar a «aliança da paz e da amizade», para que «firmemente permaneça» em face de «toda a discórdia em ira acesa» que pairam sobre o mundo. Este é o maior legado de Camões, expresso através d’Os Lusíadas, para a formação de uma consciência coletiva enraizada nos princípios mais nobres da solidariedade humana.

António Valdemar*

  • Jornalista, carteira profissional número UM; sócio efectivo
    da Academia das Ciências de Lisboa
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