Creio bem que foi a pensar no avassalador introvertismo digital que tanto se constata no quotidiano (e menos que isto não dirá quem use transporte público…), e nos futuros malefícios humanos e sociais que ele anuncia, que a Planeta Tangerina se pôs a construir — sim, sim, um livro é uma construção — este elogio da conversa «verdadeira» como um «desafiante» e «perturbador» «espaço de liberdade» (pp. 12 e 13), a tal ponto que o prato das letras acabou por pesar bastante mais do que o das figuras coloridas que Madalena Matoso trouxe para este Onde é que nós íamos? Sobre a importância e o prazer de conversar, publicado pela Planeta Tangerina, contrariando o que é comum nas publicações destinadas ao público infanto-juvenil. Para ir ao tutano do tema, os títulos dos quatro capítulos escritos por Isabel Minhós Martins e Dina Mendonça não podiam ser mais precisos: «Do que estamos a falar quando falamos de conversar?», «Por que gostamos tanto de conversar?», «Para conversarmos cada vez melhor» e «Infinitas maneiras de conversar». E no final as três autoras ainda se explicam, pois a colaboração autoral também é uma conversa, e das bem boas, por sinal: um saco de cerejas, que se puxam umas às outras, como na capa do livro; um bater de raquetes de ténis de mesa, como nas páginas de abertura; ou um perpétuo contínuo, como o trânsito solar, dia e noite, como nas guardas deste livro.
«Conversar começa por ser como caminhar, mas acaba por ser como dar um mergulho», lê-se na p. 25. E nunca é tarde para um bom mergulho a dois… que no caso da autoria deste livrinho é a três, ou, melhor dito, a quatro, pois uma vez mais a Planeta Tangerina insiste num modelo interactivo, em que o jovem leitor é a par e passo convidado a participar ou a desenvolver por si mesmo o que o tema lhe sugerisse: «este livro podia ser escrito de muitas maneiras e uma parte fundamental da conversa seria feita por quem o lesse — pois, lendo, o leitor conversaria consigo próprio e com o que tínhamos escrito. Por isso, tentámos fazer um livro que possa ser diferente de cada vez que o leias, como uma conversa viva» (p. 14).
Página a página, Isabel Minhós Martins e Dina Mendonça vão deambulando sobre o valor e os modos duma «boa conversa», que passa por «saber ouvir bem, aprender coisas novas para boas futuras conversas, estudar um assunto para poderes vir a conversar mais profundamente com outras pessoas que também o estudam e ouvir conversas de outras pessoas» (p. 38), pois ouvir também é participar na conversa. Além disso, «conversar é uma espécie de exploração» (mais: «exploração colaborativa», p. 106), algo entre a arqueologia e o laboratório, dizem, «pois estamos a pensar com outras pessoas», «a resolver problemas em conjunto» (p. 44), o que faz com que conversar seja — possa ser — «uma forma de cultivar paz e segurança» (p. 57). «Conversar também serve para isso: para nos sentirmos mais acompanhados nesta aventura que é viver» (p. 87), «criar um espaço de liberdade com os outros» (p. 93) e «encontrarmos as nossas diferenças» (p. 96). «O futuro está a transbordar de conversas que ainda não tivemos» (p. 135).
Madalena Matoso vai respigando do texto ideias e frases que recria nos seus desenhos, desde algumas mulheres que lavam roupa num ribeiro e conversam (p. 68), aos jovens que assistem a um jogo de futebol debaixo de chuva e falam do tempo (p. 37), até ao «café otomano» da p. 85 como um lugar de conversas sem pressas. Outras vezes dispensa a figuração humana e dá-nos pontes entre penhascos («quando as coisas correm mal tentamos», pp. 34-35), pedaços dum pote partido que se colam («seguir a lógica duma ideia», pp. 44-45), ou então novelos de lã que se enlaçam e desenlaçam consecutivamente (pp. 60-61) e pontos luminosos que num quadro escuro se alinham entre si («estar em interacção para nos revelarmos», p. 91). Nem perdeu a ocasião de mostrar que também as falas duma conversa «são como as cerejas», que gulosamente se puxam umas às outras: Matoso encheu uma dupla página com 18 desenhos de uma taça com as tais cerejas num saco que consta da capa do livro, que várias mãos vão puxando até à última.
As autoras não subestimam as dificuldades de comunicação interpessoal aceleradas na era digital, nem os obstáculos que a condição humana impõe, mas com referências a um leque de cientistas de diferente enquadramento expõem claramente o alcance desses problemas (a polarização é um deles, ou a carência de mediação) e a maneira de os enfrentar. Jonathan Swift também é convocado. «Não podemos evitar conversas difíceis toda a vida…», lê-se, embora pareça exagerado circunscrevê-las ao inventário dado: «as alterações climáticas, a distribuição da riqueza, o racismo, a igualdade de género…» (p. 123), «o direito ao aborto, o controlo de armas» em particular nos Estados Unidos (p. 125), «e tantas outras», mas vá lá saber-se quais sejam. Em contrapartida, os conselhos finais de moderação que permitam «manter boas conversas» têm infinitamente maiores hipóteses de as fazer «ganhar pernas» (p. 139)…
Originalmente publicado no «Observador», a 26 de Janeiro de 2025
Vasco Rosa