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Diário da Ditadura – A Recuperação de “O medo”

Tenho notado alguns comentários nas redes sociais mencionando que há muita gente a expressar angústia e, sobretudo, medo pelo que se vai passando nestes Estados (des)Unidos, com repercussões na política a nível mundial. Decidi recuperar este artigo, escrito há oito anos, aquando do primeiro mandato de Trump e fazê-lo parte integrante desta coleção, dadas as reais semelhanças entre as duas épocas. Não me enganei com o que escrevi em Março de 2017; penso até que estamos a enfrentar situações que vão piorar o nosso futuro de um modo muito mais dramático.

O medo

A baía de Angra estava apinhada de barcos. Negros, compridos, quase todos estrangeiros, tinham acudido ao pedido de socorro das autoridades portuguesas para transportarem sinistrados de São Jorge para a Terceira. A crise sísmica desse ano de 1964 estava a ser muito violenta, freguesias inteiras sentiram o estremecer da terra, as casas abateram-se ao poder e à força da energia imanada das profundezas da ilha.
Senti medo. Não tanto por mim, na irresponsabilidade dos meus 12 anos, mas pelos outros. Talvez porque me meti na pele dos que vi desembarcar no Cais da Alfândega, famílias inteiras de rostos tristes, olhos rasos de lágrimas, braços atulhados com sacos e agasalhos. Eram da minha idade alguns deles, muitos eram idosos e bastantes crianças. Pessoas de Angra abriram as portas de suas casas e acolheram, durante semanas, os jorgenses que perderam teres e haveres.
Os açorianos, de certo modo, habituam-se aos sismos quando as crises se prolongam, como foi a de 1964 e outras que se seguiram. Não porque se lhes perderam o medo ou o respeito, mas simplesmente porque se vão acostumando aos tremores e reconhecendo as suas características. Ficou famosa uma estória que bem pode descrever o que acabei de dizer:
Numa freguesia de São Jorge, um grupo de cientistas, que se encontravam na ilha a estudar o fenómeno sísmico, reuniu-se numa “venda” para trocar impressões enquanto almoçavam umas sandes do famoso queijo produzido na Cooperativa local. Numa mesa ao lado quatro velhotes jogavam uma partida de sueca, bem puxada, daquelas de fazer estralar os nós dos dedos. Repararam os engenheiros que mal sentiam um dos constantes tremores, um dos velhotes, mesmo sem tirar os olhos do naipe das ensebadas cartas, dizia: “Olha, este foi de grau 3!”. E continuavam, impávidos, o entretido jogo. Dali a pouco, quando aconteceu novo abalo, outro dos jogadores fez notar: “Ó Manel, este já foi mais fortinho, deve ter sido perto de 4!”.
Os técnicos, admirados com o grau de precisão dos idosos, trocavam olhares de espanto. Um deles abeirou-se da mesa e, delicadamente, perguntou como é que eles tinham aprendido essa técnica, como conseguiam fazer tão acertados palpites. O Ti Manel, o mais falazão deles, sem tirar o “Santa Justa” do canto da boca e enquanto batia com o Ás de trunfo no tampo da mesa, deu a simples resposta: “Sabe, senhor doitor, isto é conforme o cagaço!”

Todos, de uma maneira ou outra, sentimos medo. A forma de o controlar é que varia de pessoa para pessoa. Tenho a certeza que nunca seria capaz de vestir uma jaqueta enramada e saltar a barreira de uma praça para enfrentar um touro, de caras. Deixo isso para os mais valentões, embora o facto de ter andado, e não foram poucas vezes, a cinco ou seis metros de altura, caminhando numa prancha de trinta centímetros de largo para pregar pesadas placas de gesso nos tetos de casas, talvez me possa conceder o estatuto de, quando muito, artista de circo! A necessidade de ganhar a vida por vezes obriga a práticas perigosas, onde o seguir o mínimo de normas de segurança não pode ser descurado.
Vejo, atualmente, rasgos de medo nas caras e nas atitudes de algumas pessoas. Nas redes sociais é frequente lerem-se comentários a versar o mesmo tema: as pessoas estão assustadas e o motivo mais badalado é, sem dúvida, a imprevisível atuação do governo deste país. Estamos todos de pé atrás, sempre à espera de novas manobras, novas leis que, indubitavelmente, não nos vão trazer muita calma ou bem-estar. Estas cabeças (mal) pensantes que seguram as rédeas desta carroça não estão muito preocupadas no bem comum, mas somente na segurança dos ricos e poderosos. Aliás, são eles todos ricos e poderosos, nunca um governo americano teve nas suas cúpulas tantos milionários e multimilionários com este que nos (des)governa.
Tal como os jogadores de sueca da “venda” em São Jorge, estamos também a cair numa forma de acomodação, de apatia generalizada que poderá ter fins nefastos. Vamo-nos habituando a esta tremelicante caminhada, a este jogo de palavras, de mentiras e de falsidades com que somos confrontados todos os dias e ainda acabamos por aceitar algumas como verdades, de tanto as ouvir! Talvez seja mesmo esse o propósito dos novos governantes, figuras que já demonstraram que não se poupam a meios sujos e até ilegais para conseguirem tapar os olhos ao eleitorado e alcançarem os seus fins. E aqui, claro, não se podem excluir nenhum dos partidos deste baralho político, em certos aspectos são tão culpados como os Republicanos.
Confesso que me posso incluir no lote dos assustados. Tenho receio pelo que poderá acontecer com o Medicare, sistema a que passarei a pertencer dentro de poucas semanas; tenho sérias preocupações com o futuro dos meus netos, das dificuldades que poderão enfrentar não só nos sistemas escolares mas também nos perigos que os esperam com a degradação do meio-ambiente; preocupa-me a qualidade de vida dos americanos em geral, com a hipótese de se verem confrontados com piores planos de saúde, menores possibilidades de acesso a doutores e hospitais, escolas degradadas e aumentos do custo de vida sem a devida compensação nos salários e planos de reforma.
Sei que a nossa vida não se pode comparar a uma jogatana de sueca, acompanhada por uns cálices de aguardente ou angelica. Mas gostaria de ter a esperança de que os abalos, as crises a que estaremos sujeitos no futuro, sejam as de origem natural ou sejam as que nos caírem no regaço criadas pelos humanos, venham a ser resolvidas com serenidade e com o único objetivo do bem comum, não em benefício de uma minoria ou da classe política, já por si beneficiada por todas as formas de nepotismo imagináveis.
Afinal, o que precisamos é de um governo no qual todos possamos confiar.
Com menos mentiras, menos sujidade e mais honestidade, para que não tenhamos de fazer palpites à vida usando a mesma técnica do Ti Manel de São Jorge.

João Bendito

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