“…durante as várias fases do genocídio usaram-se os clássicos argumentos como o “não podemos decidir quem é o agressor com base no número de mortos”. Ora… podemos sim. É exatamente isso que faz um massacre ser um massacre. Quando Trump falou na Riviera e na expulsão dos palestinianos de Gaza, uma vez mais, o mundo civilizado ficou parado. Assistiu de camarote. O cessar-fogo foi interrompido e, de rajada, despacharam mais 1000. Nós já só contamos cadáveres palestinianos à centena. Menos que isso nem é estatística…” (Tiago Franco, cronista do Jornal Público, 28/03)
De acordo com a ONU, em 2 de abril, os militares israelitas ocupantes mataram 14médicos e paramédicos socorristas devidamente identificados que tentavam ajudar palestinianos feridos e aprisionados pelos escombros, e enterraram-nos numa vala comum. Desde o fim do cessar-fogo já foram mortas mais de 300 crianças, num total que já ultrapassou as 1 400 vidas, elevando para cerca de 50 750 o número total de palestinianos mortos pelas armas (bombardeamentos e balas) desde 7 de outubro.
Por lhes ter sido cortado acerca de um mês o acesso às vacinas, entre outros bens e produtos essenciais (como alimentos e fontes de água), por parte das tropas israelitas ocupantes, 600 000 crianças palestinianas estão em sério risco de se tornarem paralíticas ou de adquirirem deficiências crónicas (devido à poliomielite, tuberculose ou rubéola).
Como é possível termos, depois da 2ª guerra mundial, regressado novamente à barbárie belicista e ao neocolonialismo sem regras nem limites, em certas partes do mundo, sem que a entidade formalmente reconhecida por todos como tendo autoridade e poder suficientes para o travar ou impedir, a ONU, o consiga efetivamente fazer? Existirá outro poder em seu lugar, capaz de contemporizar ou mesmo promover tais odiosas e revoltantes situações?
Há aqui uma ironia. O capitalismo do pós-guerra orgulhava-se do facto de se ter transformado num sistema humano, promotor da Paz e da dissolução dos blocos militares. Afirmou-se adepto da democracia e do voto universal em todo o seu território; empenhou-se em despesas substanciais com a segurança social, especialmente na Europa, fomentou a proximidade ao pleno emprego; promoveu a descolonização, para se livrar dos horrores da exploração colonial e confiou à ONU a tarefa de zelar pela Paz e pela via negocial para a resolução dos conflitos entre povos e nações. Com base nestes factos, afirmou-se que o capitalismo havia “mudado”.
Ora o capitalismo contemporâneo vai assistindo à reversão de tudo isto, em direção ao seu horrendo passado. A expansão do neofascismo em aliança com o neoliberalismo, tem vindo a atenuar a democracia; o aumento das despesas com armamento em detrimento das despesas com o bem-estar está a atenuar a figurado Estado-providência e a absolutizar as regras do mercado; a ensaiar novamente o controlo metropolitano das grandes potências sobre grande parte dos recursos naturais do resto do mundo, como bem demonstra o recente plano descarado de Donald Trump de se apoderar das riquezas minerais da Gronelândia e da Ucrânia, ou de desenvolver Gaza, expulsando os palestinianos do seu já minorado território, para fins imobiliários e turísticos.
No Iraque, na ex-Jugoslávia, na Líbia, no Afeganistão, no Sudão ou agora na Síria, esta reversão tem-se vindo a afirmar, em contraponto com a autoridade da ONU e, possuindo uma composição e regras indefinidas à partida de acordo com grandes interesses do momento entre grandes potências. Ela tomou um nome perfeitamente aleatório, ilegítimo e muito perigoso para a humanidade que temos vindo a ser habituados a ouvir (e a aceitar?): “A Comunidade Internacional”.
Mário Abrantes