“Uma das questões que merecem reflexão sobre o uso ilimitado do iPhone ou smartphone pelas crianças é a das consequências nas interações das crianças entre si. Interagir com um aparelho ou com uma pessoa não é a mesma coisa.”
A discussão em torno do uso dos telemóveis e das outras tecnologias de comunicação e o seu impacto na vida das pessoas está cada vez mais na ordem do dia. É de uma evidência indesmentível que no mundo da comunicação o recurso à tecnologia é extremamente útil, facilita a vida, permite resolver problemas complexos com alguma facilidade e obter informação necessária rapidamente. Como não há bela sem senão, contudo, há que reconhecer que o telemóvel, por exemplo, não traz só vantagens; o seu uso, e principalmente o seu abuso, tem os seus inconvenientes. Pretendo nesta crónica chamar a atenção para algo que é central na vida social: o impacto do uso das tecnologias da informação nas relações intersubjetivas em que estamos permanentemente envolvidos na vida do dia a dia, as relações eu-outro e eu-outros.
O primeiro sinal que me levou a pensar que o uso desenfreado dos telemóveis viria alterar a convivência entre as pessoas foi uma cena que observei num restaurante em Ofir, concelho de Esposende, onde passo o verão há vários anos. Seguindo uma tradição de longa data, reservei mesa num restaurante para juntar a família no nosso tradicional jantar de fim de férias. Chegámos, sentámo-nos à mesa, fizemos os pedidos e começámos a conversar. Quando passei os olhos pela sala, deparei-me com uma cena que me chamou a atenção: mesmo junto à nossa mesa estava um casal jovem, cada um a “dedar” continuamente o seu telemóvel. A concentração era total, quase não trocavam palavra. Durante o resto da refeição, quando passava os olhos por ali, o casal raramente estava a conversar e os telemóveis não saíam da mesa.
Hoje, em qualquer restaurante a que se vá, não há apenas uma mesa em que o telemóvel é rei; quase não há mesa sem tais aparelhos. Então, se estão miúdos, é certo a sabido que cada um está de telemóvel em punho. Quase não há conversa e a pouca que há ainda é à volta do que se vê no écran dos ditos. Aliás, atualmente a presença do telemóvel está por todo o lado. Vamos pela rua fora e meio mundo anda olhando para o iPhone ou smartphone, até a atravessar as passadeiras; há quem o faça mais atento ao ecrã que leva na mão do que ao trânsito da rua ou avenida.
Este uso generalizado já há muito chegou às crianças. Há relativamente pouco tempo lia-se na imprensa, a propósito da proibição do seu uso no espaço escolar, que a grande diferença nas escolas que tinham aderido à proibição do seu uso no tempo letivo era a de que havia muito mais barulho e movimento durante os recreios, porque as crianças interagiam entre si e se movimentavam mais.
Uma das questões que merecem reflexão sobre o uso ilimitado do iPhone ou smartphone pelas crianças é a das consequências nas interações das crianças entre si. Interagir com um aparelho ou com uma pessoa não é a mesma coisa. Passar horas esquecidas de máquina em punho não terá consequências no modo de uma criança se relacionar com as outras crianças, na relação eu-outro e na relação eu-outros? Bem sei que as tecnologias já fazem e farão sempre parte das suas vidas, mas as crianças têm necessidade de aprender a convier com as outras pessoas e essa necessidade exige habilidades de outra natureza e a sua aprendizagem não é nada fácil.
Há crianças que passam horas de telemóvel na mão, alheias ao que está à sua volta; por vezes é preciso tocar-lhes para regressarem a este mundo. Uma criança ou um adolescente agarrado a um telemóvel está isolado e centrado numa máquina numa posição de domínio: dá-lhe ordens e a máquina obedece. Se falha, recomeça a procurar caminho para atingir o objetivo, porque a máquina está “programada”, só é preciso habilidade e esperteza para a conduzir para o objetivo. O aparelho vai por onde a criança quer; se isto não acontece, não foi a máquina que se “enganou” ou “decidiu inventar”, foi o jogador que falhou e pode voltar atrás e ser mais eficiente.
Ora quando a criança ou adolescente se encontra com alguém, com uma pessoa, criança, adolescente ou adulto, e antes passou horas à volta de um tablet, telemóvel ou computador, como vai ela reagir? Como vai ela conviver com os outros? Os outros não estarão inteiramente subordinados aos seus gostos e caprichos; como ela terão as suas idiossincrasias, tendências, gostos, caprichos, sonhos e pesadelos. Cada um é “um mistério” a descobrir e essa descoberta é sempre limitada. Como vai decorrer essa convivência, porque aqui a criança não está perante um objeto, mas perante alguém, um outro eu como ela, mas totalmente distinto?
À problemática da relação eu-outro dediquei bastante estudo e reflexão. Sobre o tema, li, com grande proveito, a obra de dois filósofos do século XX: Martin Buber (1878-1965) e Emmanuel Lévinas (1906-1995). A obra deste último é, pode dizer-se, uma constante reflexão sobre o que é e o que acontece num encontro entre um “eu” e um “outro”, isto é, um encontro face a face de dois eus cada um com a sua individualidade. Uma primeira nota a ter em conta, como é evidente, é que a relação eu-outro é distinta da relação entre o “eu” e as “coisas do mundo”. Nesta dá-se um ato de conhecimento; o eu apodera-se do objeto e torna-o seu, assenhoreia-se dele. Na relação eu-outro, por mais apurado e abrangente que seja o conhecimento do eu sobre o outro, este sempre lhe escapa; há nele um plus impossível de dominar. Por mais que eu descreva aquele que encontrou, o encontro com esse alguém é sempre incompleto; devido à alteridade, está sempre marcado por uma separação insuperável; o outro é, por natureza, esquivo, porque nunca consigo reduzi-lo a um mero objeto e, por isso, diz Lévinas, o outro é rosto; é possível descrever uma máscara, mas não um rosto. O rosto distingue-se de uma máscara, porque não é uma fachada inerte; o rosto escapa ao meu olhar, porque “o rosto fala”, “no rosto do outro brilha o rasto do infinito”, diz o filósofo; isto é, o rosto é mistério, é absolutamente transcendente. É por tudo isso que muitas vezes dizemos, a propósito de alguém com quem convivemos intensamente: “eu pensei que o/a conhecia bem, mas estava enganado”.Estar perante alguém é estar perante uma surpresa constante.
A presença das tecnologias da comunicação nas nossas vidas é uma realidade incontornável e veio para ficar. Por outro lado, a intersubjetividade, as relações eu-outro e eu-outros, são constitutivas da nossa humanidade. Para um bom funcionamento da nossa sociedade há que encontrar um equilíbrio entre o uso das tecnologias da comunicação e as relações humanas, pelo que se exige uma atenção redobrada de todos, em especial dos educadores, na aprendizagem das relações intersubjetivas.
José Henrique Silveira de Brito