1924: A Visita. Catálogo da exposição homónima.
Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada, Abril de 2025, 200 pp.
Certamente uma das grandes realizações — como o colóquio na Universidade dos Açores — que assinalaram em 2024 o centenário da chamada Visita dos Continentais, por iniciativa do jornal micaelense Correio dos Açores e do seu director José Bruno Carreiro, a exposição na BPARPD, inaugurada a 31 de Outubro e que encerrou há cerca de duas semanas, tem agora— e finalmente —a devida expressão perene neste catálogo de 200 páginas a cores que a ilustra e documenta, e deve receber a nossa melhor atenção.
O evento de há cem anos foi uma extraordinária campanha que a todos deve ser dado conhecimento (e pergunta-se: — Haverá itinerância da exposição?), e o esforço de pesquisa e documentação levado a cabo pela equipa deste equipamento cultural merece sem dúvida ser elogiado e posto em destaque, pois instituições públicas como esta têm também a seu cargo constituírem robustas alavancas de conhecimento, e não serem apenas um daqueles lugares onde se vai, de vez em quando, ler isto ou aquilo, estudar nas pausas escolares ou assistir a lançamentos ou palestras mais ou menos interessantes.
Nunca é demasiado sublinhar que a investigação histórica é uma componente essencial das bibliotecas e dos arquivos, e se neste catálogo podemos reconhecer o grande caminho percorrido para trazer à actualidade o que foi a Visita dos Continentais, também ficam claros — em particular para quem, por carolice ou dever de ofício, está mais dentro do assunto — os limites do alcance dos meios e modos postos à disposição de quantos, a partir das ilhas, tentam estender os seus braços e energias — com pesquisas in loco — à imprensa continental e aos espólios pessoais de alguns dos participantes daquela histórica jornada. Nesse sentido, importa deixar bem claro que esta nota crítica não é outra coisa que um forte apelo concreto à tutela política para que as instituições públicas culturais dos Açores vejam substancialmente reforçados os recursos para trabalhos de fundo deste tipo. Aliás, já o referi em alguns dos artigos da série «Por uma política cultural nos Açores» e na recensão ao catálogo da exposição de Canto da Maia no Museu Carlos Machado em 2020, feita para o Observador.
Efectivamente, se a BPARPD beneficiou de ter a seu cargo o arquivo de José Bruno Carreiro — absolutamente central, como se imagina, para a reconstituição desta iniciativa do Correio dos Açores — e de dispor de extensa quantidade de jornais açorianos da década de 20, é claro como água que lhe faltou o levantamento exaustivo dos jornais continentais, quer os de 1924 quer os dos anos consecutivos. Essa é a razão que explica o facto de as citações dos relatos da Visita se circunscreverem aos de José Leite de Vasconcelos e de Oldemiro César, que foram passados a livro, ficando de fora os de Armando Boaventura, dispersos por mais de um semestre do diário lisboeta A Época, onde Trindade Coelho aliás publicou, a 5 de Agosto de 1924, uma página de grande amizade por José Bruno, em atenção à sua perda atroz pela morte de um filho, e que também se reporta à recente jornada nos Açores.
Eu próprio, com todas as facilidades típicas de um frequentador muito habitual da Biblioteca Nacional, autor de Raul Brandão e os Açores. Motivo, edição e recepção de «As Ilhas Desconhecidas. Notas e paisagens» de 1927 — impresso em Outubro de 2019, certamente um livro que esperou décadas para ser feito —, admito não ter alcançado o pleno do inquérito aos periódicos e à correspondência trocada entre os participantes da Visita. Deste modo, fui surpreendido — sentimentos contraditórios envolvidos! — pelo que depois disso ainda me foi dado descobrir e está desde 22 de Outubro plasmado no extenso artigo do Expresso online «Raul Brandão e a viagem dos continentais à descoberta dos Açores»: novidades que reconfiguram aspectos da campanha de Brandão (por exemplo, o facto de ele se ter comprometido com crónicas para O Século que não escreveu), mas sobretudo com os efeitos quase imediatos da Visita, como um número especial da Ilustração Portuguesa com capa de Domingos Rebêlo, uma exposição de produtos açorianos no foyer do Teatro Nacional, promovida por aquele jornal, já então dirigido por Trindade Coelho, outro visitante, e o debate na imprensa açoriana sobre a formação de um museu etnográfico regional com o beneplácito de Leite de Vasconcelos. A este propósito, ou na mesma linha, se quiserem, a falha clamorosa — diria mesmo: a falha incompreensível — deste catálogo é o facto de ter desperdiçado a oportunidade, decerto irrepetível, de reproduzir o número do Diário de Lisboa que a 6 de Setembro de 1924 reuniu as impressões de muitos dos Visitantes, para mais podendo aproveitar o exemplar raríssimo que de forma tão diligente foi obtido de um particular de Angra do Heroísmo, e de que na exposição, por falta de recursos técnicos adequados, apenas se pôde ver a primeira página. Por outro lado, parece-me que o opúsculo de Pedro da Silveira José Leite de Vasconcelos nas Ilhas de Baixo — a mais profunda análise do relato do etnógrafo, e não só — mereceria muito mais do que uma breve alusão na p. 10.
A reconstituição do roteiro diário da Visita, entre 27 de Maio e 22 de Junho, conjugando e contrastando documentos variados, vem provar que os nove convidados de José Bruno — afora os 18 dias em que ficaram em São Miguel — percorreram o arquipélago no ritmo mais do que acelerado permitido pelas brevíssimas escalas do quinzenal navio de carreira. Esta gritante desproporção marcaria seriamente a atenção dos relatos relativos às demais ilhas: a passagem pelo Corvo, por exemplo, que ficaria marcada por celebrada fotografia de Leite de Vasconcelos inquirindo velhos corvinos, é de apenas duas horas, o que não permitiu, sequer, a ascensão ao afamado Caldeirão; chegam a Angra do Heroísmo de madrugada e partem pela meia-noite de 14 de Junho (p. 125), voltando a 20, basicamente para assistirem a uma tourada à corda. Na Horta, desembarcam na noite do dia seguinte e partem menos de 24 horas depois (pp. 135-37). Em São Jorge chegam pelas 14 h do dia 19 e saem para a Graciosa à meia-noite… Em Santa Maria não ficam mais do que umas quatro horas bem medidas… (p. 155). Morreria no tempo de um fósforo riscado também a ideia de reunir em livro as palestras ou conferências feitas pelos visitantes continentais, referida por José Bruno a Luís da Silva Ribeiro numa carta de 3 de Agosto (p. 162), e o projecto do monumento a Antero de Quental pela mão do escultor Teixeira Lopes não passou dos papéis em que foi reproduzido, acabando por ser levado por diante por Canto da Maya duas décadas depois, e com as dificuldades e contratempos hoje devidamente conhecidos. José Guilherme Reis Leite, num artigo que fez parte do Jornal da Visita que foi folha de sala da exposição, iria escrever, sabiamente: «Não foi difícil conquistar elogios e palavras bonitas daqueles que tiveram a sorte de viajar como príncipes por todas as ilhas do arquipélago, recebidos de braços abertos e mimados entre festas, jantares e bailes. Todos se derreteram em elogios às deslumbrantes paisagens das ilhas. Esqueceram as misérias, que ou não lhes foram mostradas, ou não repararam, entretidos a desenhar casinhas, como Leite de Vasconcelos, sem se interessarem pelos que viviam nelas» (p. 174).
Essa foi uma das diferenças que marcou a narrativa de Raul Brandão, a que a exposição, o jornal e o catálogo dedicam secção distinta, incluindo «Um viajante especial», como aponta Urbano Bettencourt logo no título do seu ensaio, que conclui assim: «Em tudo isso, afinal, se revela a arte de um escritor que trouxe como propósito de viagem olhar para dentro das ilhas e das gentes» (p. 199; itálico meu). Resta dizer que o instigante ensaio de Carlos Riley — pioneiro do projecto desta boa exposição, cujos trabalhos foram diligentemente continuados por Odília Gameiro e Pedro Pacheco de Medeiros, arquivistas da BPARPD — publicado no mais recente número de Atlântida, revista do Instituto Açoriano de Cultura, «Os Açores vistos do Alto. Raul Brandão e a paisagem insular» (sendo que «do Alto» significa da Casa do Alto, em Nespereira, Guimarães), pp. 31-50, merecia ser reportado numa bibliografia ou guia de leitura, algo que também beneficiaria este catálogo -livro — obra de referência sem dúvida, e mesmo assim.
O patrocínio da Nova Gráfica a esta publicação comprova o crescente protagonismo de Ernesto Resendes na vida cultural açoriana, e em particular neste contexto. A sua editora Letras Lavadas lançará na Casa da Autonomia a 27 de Maio —coincidente com a chegada dos continentais a Ponta Delgada — o livro Mês sem Sono. Reportagem da Visita dos Continentais aos Açores no verão de 1924, de Armando Boaventura, edição organizada por Ana Cristina Correia Gil e o autor deste artigo.
Vasco Rosa