Os dois últimos anos tinham sido a maior descoberta da minha vida.
Começara por deixar a casa da família em Santa Maria, onde passei a minha infância e adolescência, para vir fazer os últimos dois anos do Liceu para Ponta Delgada, o meu concelho de nascimento, mas onde até então só vinha de férias uma vez por ano. A cidade era pois, para mim, então um espaço novo e grande, quando comparada com os limites do bairro da Belavista onde vivera ou com a rua direita de Vila do Porto.
É certo que o cosmopolitismo de Santa Maria nos anos sessenta, moldado por muita gente de passagem que trabalhava no grande Aeroporto e as frequentes viagens ao estrangeiro e a Lisboa, me prepararam sem saber, para o encontro com a cidade, mas o início do ano letivo de 1972, fora para mim um deslumbramento. As novas disciplinas da alínea E (Direito) ajudaram: a filosofia dada pelo Mestre Rui Galvão de Carvalho, como gostava que o chamássemos, a organização política, o Latim e o Alemão completavam um encontro com novos saberes. Lia-se muito e as tertúlias no João Luís e no Gil, cafés que pontificavam na nossa preferência, eram espaços de convívio e discussão. O Gil era claramente um café diferente que vendia o Comércio do Funchal, o República e exibia ao lado das caixas de chocolate e dos bolos com creme, os livros proibidos da Compasso do tempo ou as últimas novidades literárias.
Descobri também novos amigos que se tornaram próximos, colegas de carteira com quem se estudava, partilhavam-se as ideias e os sonhos. O António João, o Pedro Paulo, o Rui Melo, o Zé Alberto, o Mariano Bonito e o Carlos César faziam parte deste grupo que a vida e o destino mais tarde, encarregaram-se de separar.
Esses dois anos foram marcados por acontecimentos que me tocavam em particular, na perspetiva de Católico liberal como então me sentia-o caso da Capela do Rato e as suas repercussões na relação do Estado com a Igreja e os polémicos livros a que se sucedeu a prisão e julgamento do Padre Mário Oliveira da Macieira da Lixa, já desaparecido e que depois evoluiu para muito longe daquela que se constituiu então como símbolo de uma diferente leitura do Evangelho.
Estes episódios e o que nos ia chegando muito pela mão do Carlos, através da “literatura” que íamos buscar ao Colégio do Infante, adensavam a convicção que o regime que nos governava não servia e não duraria muito.
Entre nós o gosto pela música era muito eclético. Tanto ouvíamos as orquestras de James Last e Paul Mauriat, depois de explicações de Latim que nos dava o nosso amigo Padre Nóia em sua casa, como ele próprio punha a seguir a rodar o “Venham mais cinco” do Zeca Afonso acabado então de sair. Mas ainda nos sobrava tempo para ouvir os Beattles, o Joe Coocker, os Creedence, ir aos bailes do Ateneu ou dançar nas festas de garagem.
Em Março de 1974 fomos em excursão de finalistas a Lisboa. No Apolo 70 comprei o “Portugal e o Futuro” acabado de sair. O Livro de Spínola lido de um fôlego, era o prenúncio de uma divisão clara no regime e na concepção do futuro da política Ultramarina.
Não me surpreendeu pois muito, aquela manhã de Abril, em que na sequência das notícias que nos chegaram pelo Emissor Regional, ao meio dia foram fechados os portões do Liceu. Era a revolução.
Em Outubro, com uma bolsa de estudo da Junta Geral, ainda fui para Lisboa para cursar direito. Rápido se percebeu que a Universidade nesse ano não ia abrir. Voltei a Ponta Delgada. A agitação era muita. Os partidos estavam a formar-se no continente e na região. Apenas um se afirmava claramente autonomista, o PPDA do antigo deputado à Assembleia Nacional João Bosco Mota Amaral, já com experiência política ganha na chamada ala liberal do parlamento. Fundado no salão paroquial da Fajã de Baixo por entre outros Mota Amaral, João Bernardo Rodrigues, Américo Viveiros, João Vasco Paiva, Jorge Nascimento Cabral entre muitos outros, o PPDA integrou desde logo na sua sigla a afirmação autonomista e regional. O Partido Socialista foi igualmente dos primeiros a instalar-se com os seus históricos fundadores, onde pontificavam entre outros Jaime Gama, Silvano Neves Pereira, San-Bento, Avelino Rodrigues, Martins Goulart, Dionísio de Sousa, Martins Mota, o Simplício, o Albano, o João Luís de Medeiros e claro o jovem Carlos César.
A revolução com o MFA a liderá-la, estendeu aos Açores as Campanhas de dinamização cultural, na verdade sessões doutrinárias que não escondiam o gosto pelo poder popular, o rumo ao socialismo e pelo ideário comunista, visível nos filmes cubanos e oriundos de leste projetados nessas sessões que decorriam pelas Casas do Povo e salões da ilha. Num misto inicial de curiosidade e desejo de mudança, cedo as críticas do MFA à igreja e ao seu papel na sociedade, rapidamente foram gerando um sentimento de mal-estar, alimentado pela secular ligação dos Açorianos à América e pela possibilidade de uma autodeterminação ou autonomia ou seja da livre administração dos Açores pelos Açorianos ambição e slogan herdada da primeira campanha autonómica do século XIX.
Em pouco mais de seis meses, dos finais de 74 a meados de 75, os Açores e em especial São Miguel, ferveram de tensão política e social. Seguíamos a atualidade pela imprensa local e pelos jornais de Lisboa que nos chegavam com vinte e quatro horas de atraso e claro pela rádio. Para mim, o grande noticiário da noite do Emissor Regional apresentado pelas vozes de Lourenço de Melo e João Coelho entre outros, constituía a minha principal fonte de informação. Sintonizava no velho Schaub o emissor regional, no meu quarto virado para a marginal e ficava a ouvir as notícias do princípio ao fim.
Na contestação ao radicalismo da revolução figuravam os sectores da Igreja mais conservadora que era na verdade a sua quase totalidade, os partidos de centro direita, nomeadamente o CDS e o PPDA e o então recém fundado MAPA (Movimento para a autodeterminação do Povo Açoriano) liderado por Costa Matos, Melo Bento, Sousa Pedro e José da Silva Fraga. A FLA Frente para a Libertação dos Açores apareceria pouco depois liderada por José de Almeida, com os seus comunicados e o Milhafre, jornal que defendia a causa da Independência.
Nesse ano em que a Universidade esteve fechada, passava os dias devorando a imprensa do Continente, ouvindo rádio, lendo tudo o que aparecia e dando explicações de filosofia e Português ao fim do dia, a adultos que se preparavam para fazerem o sétimo ano dos liceus.
Foi nesse período relativamente curto e nesse contexto de incerteza quanto ao futuro das ilhas, que em Lisboa foi tomada a decisão de levar rapidamente a Televisão para os Açores. Era Presidente da RTP o Major Ramalho Eanes e deve-se a ele a decisão de instalar com urgência, a televisão nas ilhas. Essa era naturalmente uma ambição antiga dos Açorianos. Já havia trabalho anteriormente feito por um grupo de que fez parte entre outros, um Açoriano já então com grande destaque na imprensa nacional, Mário Mesquita.
A instalação da RTP Açores foi feita em tempo recorde, com dois emissores com torres espiadas, instalados em pré-fabricados na serra da Barrosa em São Miguel e na de Santa Bárbara na ilha Terceira. O estúdio, provisoriamente, foi instalado onde funcionava a Telescola (ensino à distância criado em Portugal em 1965, dos mais bem sucedidos de toda a Europa e também estendido aos Açores, antes ainda da revolução) na Estação Agraria situada em São Gonçalo. A rapidez na instalação, obedecia ao objetivo de não deixar os Açores fora do processo democrático e revolucionário em curso e fortalecer os laços de ligação com o todo nacional, pondo travão a eventuais derivas separatistas.
Tal urgência, foi agravada pela grandiosa manifestação do 6 de junho de 1975 em Ponta Delgada, em que uma enorme mole de gente da cidade e vinda de outras partes de São Miguel, exigiu a demissão do governador civil Borges Coutinho, militante do MDP/CDE e próximo do Partido Comunista, ocupou o Emissor Regional e o Aeroporto e gritou pela Independência. Lisboa assustou-se.
No final desse mesmo mês, eram publicados anúncios na imprensa local para recrutar os primeiros profissionais que iriam começar a televisão nos Açores.
Eu tinha ainda apenas dezassete anos. Mas interrompi as explicações, adiei a Universidade e inscrevi-me no concurso. Num júri presidido por Alvares de Carvalho, recentemente falecido e de que faziam parte Fialho Gouveia e José Corte-Real, lá prestámos provas um dia inteiro nas instalações da estação agrária. Como ainda não tinha dezoito anos, idade mínima para se poder trabalhar para o Estado, fiquei em primeiro suplente. Só seria chamado no início de 1976.O concurso foi em julho e as emissões experimentais iniciaram-se a 10 de agosto. A categoria dos primeiros rostos da televisão locutor/redator já que associavam a apresentação da emissão à leitura das notícias. As primeiras caras da nossa televisão foram os meus amigos Ana Maria Cordeiro, Paulo Martinho e Emanuel Carreiro. À segunda-feira não havia televisão para descanso do pessoal. Nesse Verão, a audiência media-se na Avenida marginal. Até às 22.30 h a avenida estava vazia porque toda a gente estava frente à televisão. Quando a emissão encerrava, a avenida marginal voltava a encher-se de passeantes.
O primeiro Chefe de serviço de programas foi Bruges da Cruz, natural da Terceira que já trabalhava na RTP em Lisboa e que foi mandado para coordenar a programação dos primeiros tempos das emissões experimentais. A RTP Açores no seu início era uma delegação da empresa mãe de Lisboa, dirigida por uma Comissão Administrativa. O seu responsável era pois designado por delegado da Comissão Administrativa. Os primeiros delegados nos Açores foram militares, consequência do período revolucionário que se vivia. Primeiro o Capitão Vale do exército, seguido pelo Capitão Teófilo Serrasqueira Pereira da Força Aérea e depois pelo Açoriano também do exército, tenente-coronel Albergaria Pacheco. Em 1977 chegou outro delegado vindo de Lisboa, o Capitão da Força Aérea Costa Parente. José Maria da Costa Parente era um homem de confiança do Capitão Tomás Rosa, que fora Presidente da RTP. Costa Parente tinha conhecimentos na área da contra-informação, era um bom organizador e chegara a dirigir a informação da RTP nacional por poucos meses. Chegou a Ponta Delgada num tempo em que a tensão social e política ainda não tinha diminuído, não obstante a Constituição de 1976 já tivesse aprovado no seu título VII, a opção autonómica para os Açores e Madeira no quadro de um Estado Unitário regional. Costa Parente que infelizmente morreu muito cedo, era um homem inteligente e hábil e teve um importante papel não só na consolidação e dinamismo da RTP-Açores, como na relação de confiança que conseguiu estabelecer com as autoridades regionais, facilitando o desenvolvimento da sua atividade e a afirmação do papel da televisão regional. Conheci-o muito bem e trabalhei com ele. Aterrámos juntos no mesmo voo ao lado um do outro em Ponta Delgada, quando foi buscar José Eduardo Moniz para dirigir a informação regional. A ladear toda a pista e placa do Aeroporto, estavam elementos do Corpo de intervenção, vulgo Polícia de choque que tinham vindo nesse dia de Lisboa, na sequência das agressões a Almeida Santos em Ponta Delgada. Disse-me… isto vai aquecer ainda mais!… O ambiente portanto não tinha acalmado. Costa Parente que tinha um forte apoio de Lisboa, conseguiu um investimento importante em equipamento e instalações, tendo criado as delegações em Angra e Horta. Beneficiando de um bom entendimento entre Mota Amaral e Pinto Balsemão então primeiro ministro, o Governo da República através do Decreto Lei 283/82 atribuiu larga autonomia aos Centros Regionais da RTP como nunca mais houve, com capacidade própria e totalmente autónoma para gerir o seu orçamento e ,toda a sua atividade e classificando os seus diretores no nível mais alto dos diretores da empresa.
Devo a Costa Parente e a Soares Louro, terem-me facilitado a transferência para Lisboa para continuar os meus estudos em Direito, a par da minha atividade jornalística no Telejornal nacional, nos velhos estúdios do Lumiar. Costa Parente foi o último diretor militar da televisão Açoriana. Sucedi-lhe no cargo em Agosto de 1984, tendo sido pois o primeiro Açoriano e civila ser diretor da RTP-Açores.
De 1984 a 1995 foram para mim os anos loucos da televisão regional. Entendia que a autonomia era antes de mais um projeto cultural identitário e que a televisão não podia fugir ao papel que tinha de ter como meio de comunicação de massas, no fortalecimento e conhecimento dessa identidade dentro e fora da região. Se nesses primeiros anos de vida as ilhas já se tinham conhecido a si próprias, graças à informação, faltava na programação através da ficção, do documentário e dos musicais, aprofundar essa consciência da nossa diferença. Diferença na riqueza e diversidade cultural da nossa música e tradições, das nossas histórias e seus autores e na inata sensibilidade e capacidade dos Açorianos para as artes e entre elas a da representação. O que se seguiu depois todos sabem e o impacto que teve nessa identidade é ainda hoje reconhecido. Foram… “ the best days of our lives..” como me disse um dia o Zeca Medeiros que tinha trazido comigo de Lisboa. O aparecimento de novos autores e a afirmação de músicos e poetas, a edição de discos e a produção de ficção, documentário e musicais encheram os nossos écrans com obras inéditas. O início das ligações de satélite com os Estados Unidos e Canadá, muito antes de aparecer a RTP-Internacional, reforçaram essa identidade na nossa ligação com a diáspora. Poder-me-á ficar mal falar desse tempo, em que liderei uma equipa notável e talentosa de muitos profissionais, hoje já reformados tal como eu. Mas faço-o também em homenagem a eles, já que ao pesquisar no google, vi como é efémera a memória dos homens e ainda mais da internet. Não encontrei referência a esses onze anos em que tive o privilégio de liderar a RTP-Açores. Trinta anos depois é como se não tivesse acontecido… Não foi um caminho fácil e foi por vezes cheio das incompreensões ao que nós nas ilhas também nos habituámos. Findos esses onze anos, achei que era altura de ceder o lugar a outro e regressei definitivamente a Lisboa. Sucederam-me muitos outros directores até ao presente, a quem se devem sem dúvida, inúmeros avanços na forma e nos conteúdos bem como na modernização e desenvolvimento da nossa televisão.
A RTP Açores foi, em meu entender, determinante numa primeira fase da sua vida no fortalecimento dos laços ao Portugal de que fazemos parte desde o nosso início como Povo, num período em que essa ligação esteve de facto em risco e numa segunda fase, essencial à consolidação do projeto Autonómico e como tal identitário dos Açores de hoje. Foi para os Açorianos a par da liberdade a maior conquista de Abril.
Do Abril de então a este Abril de hoje, cinquenta anos depois, vive-se num País em instabilidade política e numa região com uma dívida pública elevada e com inegáveis dificuldades para consolidar e avançar no desenvolvimento e promoção social e educacional do seu Povo. O que afinal ficou? Que País e que Região é que deixamos à nova geração que se nos segue?
Neste Abril, apesar de tantas dificuldades e dos nossos indicadores serem em alguns casos dos piores do País e dos mais baixos da Europa, na minha terra já não há crianças descalças nas ruas, nem jovens a terem que ir para o Seminário para poderem estudar, como o João Arruda, um de treze irmãos de família humilde, o nosso herói de Abril morto a tiro pela PIDE no próprio dia 25, manchando a revolução com sangue Açoriano. Nem gente a pedir dinheiro emprestado na freguesia para poder pagar ao médico na cidade. Nem gente a sujeitar-se a trabalhar sem horário. Nem uma capital distante que nos tratou pior do que às colónias e às vezes ainda tende a repeti-lo.
E mesmo com todas as dificuldades e limitações que conhecemos, com os erros que todos os governos foram cometendo, com valores que lamentavelmente se perderam, as nossas ilhas e o nosso País são hoje bem melhores. Fizemos coisas mal é certo, mas fizemos muita coisa boa.
A ciência e a tecnologia ajudaram muito nos últimos quarenta anos. Vive-se hoje muito mais e melhor. A industrialização massiva, as economias emergentes e um mercado que até agora era cada vez mais global, inundam o mundo de produtos a baixo preço. As telecomunicações e os media aproximaram povos e pessoas e tornam mais fácil viver longe, aproximando os afetos. A sociedade é também em geral mais solidária e mais humana. Os jovens apesar de parecerem mais indiferentes, quando chamados respondem e muitos são um prodígio de criatividade, dinamismo e disponibilidade.
Tivemos o privilégio de viver esta época única. Certamente que outros terão dito antes o mesmo… e outros ainda o dirão no futuro, a propósito do seu tempo.
Mas a nossa… foi a única e verdadeira geração de Abril.
Lopes de Araújo