Em 2026 cumprem-se 50 anos sobre a consagração da Autonomia dos Açores. Um marco histórico e civilizacional que deu aos açorianos a possibilidade de decidirem mais perto, com mais conhecimento da sua realidade arquipelágica e periférica, com mais sensibilidade às suas necessidades e com mais responsabilidade pelo seu destino. Porém, a efeméride que deveria ser um motivo de celebração e afirmação, coincide, de forma quase cruel, com os sinais mais evidentes do esgotamento deste modelo autonómico.
Vivemos um tempo em que o romantismo da Autonomia cedeu lugar a uma realidade dura: dificuldades financeiras estruturais, incapacidade de convergência sustentada com o país e com a União Europeia, níveis de pobreza persistentes e aviltantes, resultados medíocres em educação e qualificação, envelhecimento e declínio demográfico acelerado. São sintomas claros de um sistema que já não responde aos desafios de um território insular e ultraperiférico no século XXI.
A Autonomia transformou-se, perigosamente, num sistema que serve cada vez menos os açorianos e cada vez mais as máquinas partidárias. E há um dado incontornável: pensa-se muito pouco sobre a Autonomia. Nos últimos anos, a reflexão sobre o modelo autonómico tem sido escassa, superficial e, muitas vezes, meramente instrumental. As comissões parlamentares criadas para rever o sistema não passam de exercícios estéreis, tantas vezes capturadas por interesses de circunstância, sem qualquer efeito prático.
Pior ainda, o nível da representação política regional tem sofrido uma erosão preocupante. A decadência da qualidade média dos políticos açorianos não é apenas um fenómeno isolado: é reflexo direto de um modelo autonómico que se tornou acomodado, autocomplacente, e onde o mérito, a visão e a coragem política foram substituídos pela sobrevivência, pela gestão do pequeno poder e pela reprodução de clientelas.
Os 50 anos da Autonomia não podem ser apenas evocados com discursos protocolares e cerimónias laudatórias. Devem ser o pretexto para um verdadeiro processo de reflexão e transformação. É tempo de lançar um movimento cívico, cultural, plural e intergeracional de debate e renovação do regime autonómico. Um movimento com diferentes formas de participação, desde fóruns presenciais até plataformas digitais de contributos, que envolva toda a sociedade: jovens, trabalhadores, empresários, académicos, artistas, reformados, emigrantes e imigrantes.
“A Região Autónoma tem a vocação de ser o Estado dos Açores”, escreveu Mota Amaral. Esta afirmação, ousada e visionária, não é apenas uma frase de circunstância: é uma convocatória à responsabilidade e à exigência. Significa que a Autonomia deve ser muito mais do que uma gestão periférica do que Lisboa permite. Deve ser um projeto político de emancipação, de afirmação identitária e de desenvolvimento sustentável, capaz de gerar soluções próprias, lideranças fortes e uma cidadania exigente.
A refundação da Autonomia não se pode fazer em gabinetes, nem apenas nos parlamentos. Tem de nascer na rua, nas escolas, nas casas do povo, nos centros culturais, nas associações, nas universidades. E terá de olhar de frente para as novas realidades: a transição digital, a sustentabilidade ambiental, a coesão social, a competitividade económica, a inovação, a mobilidade das pessoas e das ideias.
Neste processo, a arte e a cultura devem ocupar um papel central. Porque pensar a Autonomia não é apenas um exercício técnico ou político, é, também, um ato criativo, emocional, identitário. Precisamos de artistas que interpretem os desafios da insularidade contemporânea, de escritores que reflitam sobre o que nos une enquanto povo Atlântico, de músicos, cineastas e criadores que provoquem, emocionem e inspirem.
Os Açores têm um potencial imenso, mas precisam de um novo contrato com o seu futuro. A Autonomia foi, há 50 anos, a resposta possível a um tempo histórico. Hoje, perante novos desafios, precisamos de uma nova resposta. Não se trata de acabar com a Autonomia, mas de a reinventar. Com coragem, com ambição e com inteligência coletiva.
Chegou a hora de refundar a nossa Autonomia. Porque merecemos mais. Porque os nossos filhos merecem melhor.
André Silveira