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O desenvolvimento dos Açores depende da qualidade da democracia

O desenvolvimento duma sociedade organizada num projeto coletivo político e de solidariedade entre todos depende das pessoas que ela contém. Se as pessoas tiverem essa ideia e ideal de comunhão cultural e histórico – isso, só por si próprio, constitui um potencial de modelo de “democracia decente” (quando o sistema de governo garante a efetividade dos direitos fundamentais em normalidade democrática); mas não é suficiente. Se em teoria ele pode aparentar uma democracia escorreita, na prática pode falhar: aí a verbalização dessa democracia é apenas isso mesmo, apenas teoria; mas na prática as instituições não funcionam.
E as instituições não funcionam por um exclusivo motivo: não possuem um modelo de sistema de governo (modelo político de controle entre os órgãos de poder político e governativo) de democracia decente, o qual é mantido por interesses instalados.
Esta é a radiografia da democracia açoriana que não é uma democracia decente: desde logo, porque não tem um sistema de governo com fiscalização eminentemente política (1.º), mas também porque o arco governativo regional (partidos políticos que têm a hegemonia da governação do país e da região, o PSD e o PS) tem interesse na manutenção desse precário modelo (2.º), mas igualmente porque não tem uma sociedade interessada na democracia (3.º).
1.º: A Constituição portuguesa garante a efetiva realização dos direitos fundamentais à generalidade dos cidadãos porque o sistema de governo nacional impõe ao poder político partidário (Assembleia e Governo da República) um contraponto de poder político inteiramente popular (Presidente da República). Mas não garante o mesmo aos cidadãos afetos à autonomia política da Região Autónoma porque o sistema de governo regional está assente exclusivamente no poder político partidário da Assembleia Legislativa e Governo regional.
2.º: Ao longo dos anos os governos insulares multiplicaram-se em iniciativas sobretudo de aumento de poder legislativo ou de maneiras de esquivar-se ao controlo da constitucionalidade. As revisões de 1997 e de 2004, as mais emblemáticas quanto à matéria das autonomias portuguesas, são exemplo: construíram-se modelos, não para melhorar as leis e a vida dos insulares, mas para os governos regionais possuírem, através de parlamentos eminentemente de maioria unipartidária, formas de governar a seu total prazer, mesmo que contrariando a Constituição e, por conseguinte, violando os direitos fundamentais dos insulares. Por isso mesmo na doutrina, e os próprios autores dessas alterações, é unânime em considerar que o sistema autonómico foi sendo descaracterizado. Realmente, baseando-se a autonomia na sua especificidade idiossincrática, trocou-se “interesse específico” por “âmbito regional”, como se não fosse precisamente o interesse específico o fundamento de qualquer lei regional de origem autonómica. Ou extinguindo o conceito de lei geral da República, quando na verdade é uma regra que nunca pode desaparecer em virtude da competência universal que a Assembleia da República tem para legislar para todos os portugueses. Criou-se, como dizem, um “buraco autonómico” sem sentido (embora as coisas vão, à maneira portuguesa, andando e andando), mas devemos melhor dizer que estivemos a brincar com coisas sérias que traduziram, afinal, a maior concentração de poder que alguma vez existiu na história política dos Açores, traduzindo um paradoxo doloroso: quando a Região Autónoma foi criada para o desenvolvimento harmonioso, regra geral desaparecida do Estatuto, mas ainda na Constituição, eis que se criou um monstro político que serve bem a elite empresarial e “latifundiária”– cujas populações mais pobres de S. Miguel pagam muito caro, conjuntamente com as restantes ilhas que são hoje mais adjacentes do que na antiguidade autonómica.
3.º: Se o Estado levou oitocentos anos para se tornar numa democracia, compreende-se que as populações açorianas, depois de quinhentos anos de isolamento, sejam fracas na verbalização democrática. Aliando isso à realidade da pobreza em larga escala e à elevadíssima iliteracia, mesmo em estratos sociais de formação académica, compreende-se a perplexidade: o ilhéu tem os olhos postos no céu; não para ver além das estrelas fixas, mas para se fixar na beleza da autonomia política que não a compreende. Somos um povo ignorante, cujo parlamento regional é a montra visível. Mais do que antes de 1976: porque antes, por não termos liberdade, a cegueira era causada pelos lápis azul; mas depois daí já não há desculpas. Ou o homem se torna adulto, ou vive uma vida de criança. Somos crianças em corpo adulto; somos tristes, mas continuamos a trabalhar para manter essa tristeza. Sendo a participação democrática uma fundamentação constitucional da criação da autonomia política das regiões insulares – eis como a cidadania merece atenção, assim como a damos para a saúde e a educação. Os partidos políticos, e os então futuros deputados e políticos, aquando das primeiras eleições legislativas regionais em 1976, não se coibiram de circular por todas as localidades das ilhas, ensinando às populações os ideais da democracia decente. Mal sabíamos nós, jovens de então, que eles apenas queriam o nosso voto, mas não o nosso esclarecimento; mas sabíamos que eles queriam governar, não para as pessoas efetivas, mas para o seu próprio prestígio social e financeiro.
Em síntese: estamos doentes. É este o adjetivo mínimo. Não temos uma democracia decente. Não temos políticos decentes. Não temos políticas regionais decentes (harmónicas). E, no entanto, temos autonomia política. É isto que queremos? Será que o Estado democrático criado em 1976 trataria melhor os ilhéus do que os próprios ilhéus em autonomia? Quanto anos vamos aguentar a mentira? Quando vamos deixar de sermos mentirosos para nós próprios?

Arnaldo Ourique

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