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Privatização da SATA – O Perigo de Ignorar o Seu Próprio Modelo de Gestão de Riscos

Num momento em que a SATA Internacional – Azores Airlines (S4) atravessa um processo de privatização, importa recordar que a empresa dispõe de um modelo interno de gestão de riscos reconhecido como tecnicamente sólido. Esse modelo, alinhado com normas internacionais como a ISO 31000:2018 e o referencial COSO II, foi concebido para apoiar decisões complexas, proteger a sustentabilidade da empresa e garantir o interesse público. Está, aliás, publicado na página oficial da empresa, na secção de “Corporate Governance”, disponível ao público através do seu website institucional.
Ora, quando a prática da sua gestão, se afasta do próprio modelo que a orienta, o risco deixa de ser teórico — passa a ser real, institucional e, sobretudo, evitável. A presente reflexão propõe-se, pois, fazer um exercício construtivo: olhar para o processo de privatização da S4 à luz dos princípios e critérios que a própria empresa declara como estruturantes para o seu comportamento empresarial1.
O que o modelo prevê
A S4 estrutura o seu sistema de gestão de riscos em oito fases — desde a identificação até à monitorização. O modelo apoia-se no chamado “Modelo das Três Linhas”: separa a governação, a gestão e a auditoria interna, anunciando transparência e responsabilização. Cobre riscos estratégicos, operacionais, financeiros, de conformidade e reputacionais, e assume que a cultura de controlo do risco deve ser transversal e permanentemente cultivada.
Esse compromisso, quando assumido publicamente, cria uma expectativa legítima: a de que, perante mudanças significativas no contexto ou nas decisões, a empresa reage com mecanismos de controlo, reavaliação e prestação de contas. Foi para isso que o modelo foi criado.
O que está em causa no processo de privatização
Sem questionar intenções, é factual que o processo de privatização sofreu alterações relevantes após a entrega das propostas vinculativas, com destaque para a assunção da dívida pela Região Autónoma dos Açores — comunicada cerca de 17 meses após o encerramento da primeira fase do concurso, já depois da escolha do consórcio vencedor, da retirada de um dos concorrentes, e da exclusão de outro por não ter apresentado uma proposta vinculativa, como previsto no regulamento — e para a posterior inclusão de dois novos sócios no agrupamento seleccionado, já em fase negocial, contrariando o disposto nos números 9 e 10 da Cláusula 4.ª do Caderno de Encargos. Trata-se de factores com impacto significativo na equidade, previsibilidade e comparabilidade do processo.
Caso o modelo de gestão de riscos da empresa não se limitasse a ser uma proclamação genérica de boas intenções, mas estivesse verdadeiramente incorporado na prática da gestão, alterações desta natureza teriam, no mínimo, conduzido a uma reavaliação formal do risco estratégico, do risco de conformidade e do risco reputacional. Gerir bem é mantermo-nos fiéis aos princípios definidos para a empresa. É evitar a informalidade e a desresponsabilização decisória, tal como, aliás, tem sido reiteradamente recomendado nos sucessivos relatórios de auditoria do Tribunal de Contas ao Grupo SATA (https://revista.tcontas.pt/edicoes/rtc_2023_05/atividade-04.html).
A ausência de resposta pública estruturada, de publicação de actas dos órgãos de decisão, e de informação financeira atualizada (nomeadamente o Relatório e Contas de 2024 e o primeiro trimestre de 2025), são factos que, cumulativamente, agravam a percepção de risco e comprometem a confiança no processo.
O risco de reputação e de governação
A transparência é um pilar transversal do modelo adoptado pela S4. Quando determinadas decisões são demasiado relevantes, mas não são explicadas, ou quando os órgãos com funções de controlo e acompanhamento não se pronunciam publicamente, surgem dúvidas legítimas quanto à efectiva separação de responsabilidades e ao equilíbrio entre instâncias técnicas, políticas e administrativas.
Não se trata de presumir más intenções — trata-se de reconhecer que, numa sociedade democrática e num mercado regulado, o silêncio institucional em matéria de interesse público é, por si só, gerador de risco.
Uma oportunidade de correcção serena
Nada obriga a que um processo iniciado com dúvidas termine mal. O reconhecimento de que houve alterações substanciais e que estas merecem clarificação pode ainda abrir caminho a uma correcção técnica e institucional do processo.
Aliás, admitir essa necessidade seria coerente com os próprios princípios enunciados pela empresa. Num sistema que valoriza a melhoria contínua e a aprendizagem organizacional, não há espaço para o orgulho institucional. Há, isso sim, lugar para decisões que reforcem a confiança pública e a credibilidade da gestão.
Nota final
Num Estado de Direito, os modelos de gestão de risco não devem ser apenas exercícios formais — são ferramentas de protecção contra decisões apressadas, omissões involuntárias ou disfunções de governação.
É neste sentido que se sublinha a utilidade de uma apreciação independente por parte de entidades como o Tribunal de Contas, no quadro das suas competências constitucionais. Esta análise pode não apenas clarificar responsabilidades, mas também reforçar a legitimidade do processo em curso.
A privatização da S4 pode ainda afirmar-se como um caso exemplar de correcção institucional e de boa decisão pública. Para tal, impõe-se que o processo respeite, de forma rigorosa e visível, os princípios consagrados no próprio modelo de gestão de riscos da empresa — princípios esses que foram assumidos e publicamente divulgados.
À luz do pensamento de Nietzsche, que nos recorda que “o nível de hipocrisia é medido pelo distanciamento entre o discurso moral e a prática efectiva”, é importante sublinhar: não basta proclamar transparência — é necessário praticá-la, de modo inequívoco e verificável, para proteger a credibilidade institucional e o interesse público.

1 https://cdn.azoresairlines.pt/sites/default/files/2022 12/07.12.22_Politica_Gestao_de_Riscos.pdf?_gl=19rpiqo_gcl_au*ODM2ODQ1MzY3LjE3NDM3MTAzNzQ.

Victor Silva Fernandes *

  • Comandante jubilado da aviação comercial
    Lead Arranger de um consórcio independente interessado na reestruturação da SATA Internacional
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