Apesar dos prejuízos acumulados ano após ano, é inegável que a SATA, enquanto grupo empresarial, tem contribuído para a criação de riqueza. Infelizmente, parte dessa riqueza tem beneficiado sobretudo… outras companhias aéreas, ao ponto do acrónimo ACMI, (Aircraft, Crew, Maintenance and Insurance) ganhar em português, um novo significado: “A Companhia Mais Ineficiente”.
O recurso a contratos de ACMI (Aircraft, Crew, Maintenance and Insurance) é, em si mesmo, uma ferramenta útil e legítima de gestão de capacidade nas companhias aéreas. Trata-se de uma solução operacional flexível que permite responder a picos sazonais de procura, suprir indisponibilidades de frota por motivos de manutenção ou testar novas rotas com risco mitigado. Vários líderes do sector têm defendido as vantagens deste modelo. Esteban Jauregui Lorda, CEO da Avion Express Brasil, destacou recentemente “que o ACMI permite ajustar a capacidade sem a necessidade de investimento estrutural”.
No entanto, a eficácia de um contrato ACMI depende do contexto, da frequência com que é utilizado, e da forma como se articula com os recursos próprios da companhia. Quando aplicado com rigor e por períodos curtos, pode representar um ganho de eficiência. Mas quando se torna estrutural e repetido, sobretudo numa companhia como a SATA, com meios humanos subaproveitados e problemas crónicos de gestão da frota, deixa de ser uma solução para passar a ser um problema.
A utilização crescente de aviões em regime de ACMI pela SATA, tem-se revelado uma opção dispendiosa e estruturalmente ineficiente, que penaliza ainda mais a sustentabilidade financeira da empresa e a optimização dos seus próprios recursos. O uso e abuso dos contratos ACMI, tem sido aliás, uma das principais razões alegadas pelas várias administrações da SATA, para justificar os resultados negativos do Grupo.
No caso da SATA Air Açores (SP), a situação adquire contornos mais complexos. A companhia opera maioritariamente com aeronaves Bombardier Dash 8 Q200 e Q400. A produção do Q200 foi descontinuada em 2009, e a do Q400 suspensa em 2021. Esta realidade dificulta a aquisição ou o aluguer (em dry ou financial lease) de aeronaves adicionais do mesmo tipo, tornando compreensível que a administração enfrente dificuldades em encontrar soluções compatíveis no mercado. Ainda assim, esta limitação estrutural não pode justificar uma estratégia permanente de leasing em ACMI, que acarreta custos operacionais insustentáveis.
O modelo de dry lease (aluguer apenas da aeronave) é substancialmente mais eficiente do ponto de vista económico, permitindo que a companhia aérea locatária utilize os seus próprios recursos — nomeadamente tripulações e manutenção — e integre a aeronave de forma mais estável na sua operação. Em termos gerais, o dry lease exige alguma capacidade instalada para manutenção e gestão operacional, o que não nos parece ser factor no caso da SATA, uma vez que a SP tem capacidade de manutenção instalada, e tripulações activas e qualificadas, e ainda para mais, subutilizadas.
O grupo dispõe de pilotos, técnicos e assistentes operacionais qualificados que permanecem frequentemente em terra, por ausência de aeronaves disponíveis. Em vez de rentabilizar os recursos humanos que já tem contratados, a empresa paga a operadores externos para fornecer tripulações completas. Esta duplicação de custos é injustificável numa empresa pública com contas deficitárias e sob vigilância permanente dos contribuintes. Neste contexto, o dry lease surge como a solução mais lógica e eficiente, pois permitiria integrar “novas” aeronaves na operação com recursos próprios já disponíveis e pagos, sem os encargos acrescidos do modelo ACMI. No entanto, a escassez deste tipo de aeronaves no mercado, exigiria planeamento antecipado, não só para aceder a dry leases eventualmente disponíveis, como para o fazer a custos adequados.
No artigo “SATA: Cortar Custos sem Cortar Conexões — A Via da Eficiência Aérea”, defendi a importância da racionalização da frota, da redução do Average Stage Length e da optimização dos recursos humanos como eixos fundamentais para a recuperação económica do grupo. A excessiva dependência de ACMI representa exactamente o oposto dessa lógica: desperdício, descontrolo e ausência de planeamento estrutural.
Já há alguns anos que se fala da eventual necessidade de renovação da frota da SP. Em Novembro de 2024, publiquei o meu contributo, para esse assunto. Não se trata de uma decisão fácil, mas depois do ocorrido no passado recente, em que a empresa se viu com mais de metade da frota no chão, será preciso tomar decisões de longo prazo. E nesse caso, impõe-se uma reflexão séria sobre a eventual necessidade de renovação da frota e os moldes de operação da própria SATA Air Açores. Seria necessário, portanto, que as suas sucessivas administrações, fossem capazes de “deixar de navegar à vista” e começassem a planear a longo prazo.
Sabemos que já foram apresentados vários estudos, alguns deles, bem interessantes, até. Mas, com os constrangimentos orçamentais da Região Autónoma dos Açores, vai se adiando o inevitável, quando uma das formas de viabilizar a renovação da frota poderia, por exemplo, passar pela abertura da SP ao investimento privado. Esta via permitiria captar capital, diluir o risco público e preparar a empresa para um novo ciclo de exploração mais eficiente e sustentável. Compreender a dinâmica de uma companhia aérea, é um passo fundamental para a sua gestão. Infelizmente no caso da SATA, os vários governos têm-se preocupado em olhar para as administrações, como um prolongamento das suas opções políticas, mas a indústria não se compadece com amadorismos, e os contribuintes acabam por pagar quando as opções ideológicas, se sobrepõem às especificidades do negócio do transporte aéreo.
Em 2024, o Grupo SATA previa gastar aproximadamente 27,1 milhões de euros com contratos ACMI, um acréscimo expressivo face aos cerca de 19,7 milhões gastos em 2023.
A Azores Airlines (SATA Internacional) representa a esmagadora maioria deste valor, enquanto a SATA Air Açores (SP), embora com menor expressão, também registou um aumento considerável face a anos anteriores. Estes números serão actualizados quando forem finalmente divulgadas as contas consolidadas do grupo, mas mesmo agora ilustram uma realidade continuada e preocupante: uma empresa pública regional, fortemente deficitária, a transferir dezenas de milhões de euros para operadores externos, frequentemente estrangeiros, em vez de investir esses recursos na sua própria estrutura.
Quanto à Azores Airlines, a actual administração, já tomou a decisão – acertada – de acabar com os voos directos, que eram suportados por ACMI, para os USA e Canadá, com partida do Porto e da Madeira. Mas esse esforço de contenção de custos, foi rapidamente ultrapassado nos últimos meses, por várias situações de A320 e A321 em AOG (Aircraft On Ground), nomeadamente devido à substituição simultânea de três motores LEAP-1A, (2 em Tarbes, França e 1 na Manutenção da TAP). Para além dos casos de corrosão, as colisões com aves, hard landings, embates com equipamentos de assistência em escala e danos provocados por mangas de emergência, são alguns exemplos de uma continuidade anormal de pequenos incidentes que deixam aviões parados durante semanas, e que revelam fragilidades ao nível da instrução, da cultura operacional da empresa e da sua gestão de risco. Para colmatar essas falhas, recorre se novamente a contratos ACMI, muitas vezes celebrados à última hora, contratando aeronaves pouco adequadas às rotas e aos mercados da Azores Airlines. Trata-se de uma resposta reactiva, desorganizada e dispendiosa, que traduz a ausência de liderança e de uma política estruturada de fiabilidade técnica e de planeamento de frota e de gestão de recursos humanos.
Num contexto de elevada pressão financeira e de forte concorrência no segmento transatlântico, a Azores Airlines deveria estar focada em consolidar rotas viáveis, rentabilizar as suas próprias aeronaves e equipas, e garantir padrões elevados de fiabilidade e pontualidade. O excesso de ACMI, longe de representar um reforço de capacidade inteligente, tem funcionado como uma rede de emergência permanente, cara e ineficaz.
Impõe-se, pois, uma estratégia que respeite os recursos públicos, valorize os trabalhadores da empresa e responda com profissionalismo e competência aos desafios do transporte aéreo dos tempos modernos. O actual modelo esgotou-se — e manter o rumo só agravará a erosão financeira, operacional e reputacional da SATA. Neste contexto, qualquer processo de mudança deveria assentar numa avaliação rigorosa do modelo de negócio, da estratégia de rede e da gestão de recursos humanos, frota e manutenção, sob pena de se perpetuarem as mesmas fragilidades, mesmo que com outros accionistas. De que vale mudar de rumo, se quem negoceia os nossos destinos, são os mesmos protagonistas que nos conduzem a esta deriva?
Victor Silva Fernandes*
- Comandante jubilado da aviação comercial e Lead Arranger de um consórcio independente interessado na
reestruturação da SATA.