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História, escassez e cultura: o valor de pedras banais

Nos campos rochosos da Nova Inglaterra, as pedras espalham-se como se tivessem sido lançadas ao acaso. Por toda a parte, são tão numerosas, desde as montanhas encimadas por granitos que gelos ancestrais despiram, às paredes hoje escondidas nas florestas que um dia índios — e subsequentemente colonos europeus — queimaram, despedregando depois os campos virgens para o cultivo. A sua frequência ubíqua tornou-as invisíveis: banais elementos na paisagem habitual, que ninguém lhes presta atenção. Durante o Último Máximo Glacial (cerca de 21000 anos atrás) a Calote Laurenciana atingiu a sua maior extensão. À medida que o gelo avançava e recuava, arrastava consigo enormes blocos de rocha — os chamados erráticos glaciares — que hoje pontuam a paisagem daquela região, como testemunhos silenciosos daquele passado geológico. Este manto glaciar estendia-se por quase todo o Canadá e partes significativas do território atual dos Estados Unidos da América (EUA), chegando até aos vales dos rios Missouri e Ohio. Nos terrenos férteis do centro e sul de Nova Jérsia, porém, onde a terra é generosa e os penedos escassos, uma simples pedra pode-se tornar num objeto de desejo. Muita gente dedica-se a escolhê-las com esmero para adornar jardins e parques num comércio que noutro lugar seria uma tarefa ridícula.
A escassez confere visibilidade ao que antes passava despercebido. Em mercados, na arquitetura ou na moda, o raro transforma o ordinário em símbolo de prestígio. Madeiras antigas, gastas pelo tempo, cobrem paredes de residências luxuosas em Connecticut construídas pela empresa Beach Walk Homes LLC (uma das cinco firmas construtoras mais respeitadas naquele estado), onde os trabalhadores são quase todos portugueses. O que antes era ruína, torna-se marca de autenticidade.
Paredes de pedra tosca e vulcânica evocam rusticidade e tradição — como aquelas que formam os recintos onde se abrigam os vinhedos da ilha do Pico, nos Açores. Em Gettysburg, pedras marcadas por balas tornaram-se testemunhas silenciosas da guerra civil, da batalha de julho de 1863,que deixou mais de cinquenta mil baixas. Hoje, no parque monumental construído naquele terreno da Pensilvânia, aquelas mesmas rochas ganham dignidade histórica, integrando instalações de grande valor simbólico e estético, financiadas com recursos públicos e comunitários. Quando, há poucas décadas, investidores tentaram transformar o local num complexo hoteleiro, a população insurgiu-se num protesto vigoroso como se as suas próprias casas estivessem em perigo. Ali, até os calhaus são «lugares de memória», lieux de mémoire no sentido proposto por Pierre Nora: espaços em que a memória coletiva se ancora quando a transmissão viva se perde e o passado precisade ser fixado no concreto.
Esta lógica não se restringe à pedra. Mesas de ferro oxidado cobertas com verniz reluzente ocupam lugar de destaque em ambientes urbanos sofisticados. O que já foi sucata, agora simboliza autenticidade. E não importa o objeto — seja madeira, pedra ou metal — se for escasso, o seu valor cresce à medida que se inscreve numa geografia da raridade.
Em termos históricos, este princípio moldou civilizações. Por séculos, o comércio global foi guiado pelo valor simbólico e económico de especiarias, sal, ou seda. O império português do oriente floresceu sobre o negócio da pimenta. O retorno de um ou dois galeões da Carreira da Índia — após combates, doenças e naufrágios, como na viagem inaugural de Vasco da Gama — bastava para gerar lucros fabulosos e prestígio aos sobreviventes. Hoje, o paisagismo reproduz esse mesmo padrão: pedras valem fortunas em mercados onde são inusitadas, enquanto em outros jazem esquecidas.
O trabalho segue uma lógica similar. Profissões valorizadas num lugar são desconsideradas noutro. Um canalizador ou eletricista, em certas regiões dos Estados Unidos, pode ganhar mais que um médico. O valor de uma competência flutua conforme a oferta e demanda, uma constante que regula mercados e revela como o contexto altera o significado.
Mas há algo mais profundo na busca pelo raro. Desde tempos antigos, aprendemos a valorizar aquilo que é difícil de obter. Este impulso move economias, mas também desejos. Está na obsessão por artigos de luxo, por experiências únicas — e até pelo fascínio por uma pedra decorativa, num lugar onde ela não deveria estar.
O valor de uma coisa, seja ela física, simbólica ou imaginada, reside, muitas vezes, na sensação de posse e distinção. No medievo europeu, o ouro simbolizava singularidade e transcendência. Na China, o jade cumpria função semelhante no imaginário de uma civilização ancestral. Entre povos indígenas das Américas, conchas e penas de águia conferiam status e sacralidade até serem relegadas ao esquecimento pela violência colonial.
Mesmo objetos ordinários ascendem à condição de ícones culturais: jeans de ganga, móveis rústicos, colchas coloridas expostas nas janelas altas dos Açores durante festas religiosas. Esses sinais, no tecido social, não constituem apenas decoração — são declarações de identidade e pertencimento.
No fim, o valor não reside apenas na matéria-prima. Está na história que o objeto carrega, na escassez que o torna desejável, e na cultura que o investe de significado. É a perceção coletiva, moldada por memória, desejo e simbologia, que desenha mercados, tendências e hierarquias.

Manuel Leal

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