1.Foram 13 as canoas baleeiras que se postaram na marca da partida para a regata à vela, sábado passado, por ocasião da Festa da Lira Fraternal Calhetense. Vieram de toda a ilha, revelando que a juventude ainda preserva as antigas tradições integradas nas celebrações festivas.
Contam-se pelos dedos os picarotos vivos que, durante a atividade baleeira, terminada em 1987, assistiam às arriadas e dependeram da atividade industrial da caça ao cachalote. Mesmo assim, na identidade e na memória deste povo perdura o imaginário do passado recente daquela atividade económica, cujos primórdios remontam aos “princípios do século XVII até à primeira metade de oitocentos,” quando “a baleação e comércio de seres humanos já se haviam tornado vitrines comerciais na América do Norte. Elas repercutiram no mercado internacional, inserindo na Nova Inglaterra nas relações de trocas globais durante o nascimento do capitalismo, quando o Atlântico se tornou o epicentro mercantil e interligou os quatro continentes por ele banhados.” 1
Do adro da igreja da Calheta de Nesquim, onde foi colocado o busto do Capitão Anselmo da Silveira – fundador da primeira companhia de caça à baleia nos Açores, com sede naquela localidade, ”tendo como sócios George Oliver e Samuel Dabney, (ambos cidadãos americanos residentes no Faial, onde o último era cônsul americano na cidade da Horta).” (…) Por contrato, “os sócios americanos comprometiam-se a fornecer uma canoa devidamente apetrechada para a caça à baleia (linhas, velas e restante palamenta), assumindo o sócio Anselmo da Silveira o comando da canoa, comprometendo-se ainda «a provê-la de um trancador e tripulantes devidamente habilitados e a não desprezar qualquer ocasião oportuna que se oferecer para apanhar baleias».2
Segundo E.Ávila, Anselmo fora capitão de baleeira americana por volta de 1852, tendo vivenciado todas as dificuldades por que passava a classe mais baixa da tripulação, nas longas permanências no Atlântico Norte e Sul e noutras paragens longínquas.
No início da revolução industrial, o óleo do cachalote e outros produtos derivados, atingiram grande valor e procura, pois à falta de petróleo, eram utilizados na iluminação, na produção energética e na mecânica.
Segundo Junior, era muito difícil e carregada de perigos a vida a bordo. De tal modo que a maioria das tripulações para além das doenças e da fome, não auferia proventos de monta, pelo que decidia não embarcar novamente. Dessas situações faziam menção, cartas enviadas aos familiares.
Valiam-se então as companhias baleeiras de cidadãos cabo-verdianos e açorianos que ao chegarem à América, por lá ficavam.
Quantas semelhanças – “mutatis mutandis” – entre a atividade baleeira produzida, em larga escala, pelos Estados Unidos e a atividade baleeira, mais tarde realizada em todas as ilhas dos Açores!
Também aqui existiram conflitos entre tripulações, armadores e industriais, a maioria das quais constituída por gente carenciada que ansiavam, meses a fio, o pagamento das soldadas para satisfazer dívidas de bens alimentares e de outra ordem, pois, só a pouca terra lavrada e o gado da porta ia mantando a fome de famílias inteiras.
2.A partir de domingo passado, ao lado do Capitão Anselmo, a Câmara Municipal das Lajes do Pico, erigiu o Busto do Escritor-baleeiro José Dias de Melo, da autoria de Rui Goulart, assinalando o centésimo aniversário do seu nascimento.
“Do fumo do meu cachimbo” título de crónicas do Autor é também a marca simbólica deste operário da escrita, defensor dos baleeiros e do homem explorado, oprimido, injustiçado, ofendido na sua dignidade, mas merecedor de respeito e consideração pela gente da terra. Gente que, por razões económicas, enfrentava e arpoava o monstro marinho. Só para sobreviver, respeitando e temendo sempre a natureza e a vida no mar donde lhe vinha o minguado sustento. Ao contrário do que se possa afirmar, só as carências sociais que bradavam aos céus, foram as únicas e mais fortes razões que mobilizaram os baleeiros açorianos. Nunca o desejo de dizimar o maior monstro marinho, como alguns alegados ambientalistas, pretendam fazer crer.
Imbuídos desta cultura e identidade tradicionais, jovens de ambos os sexos que entusiasticamente participam nas regatas de botes baleeiros, a remo e à vela, não são já testemunhas das expetativas, angústias e dificuldades que afligiam centenas de famílias de baleeiros, enquanto durava a baleação.
Eles, porém, continuam sendo protagonistas e heróis de competições tradicionais que animam ainda as festas de algumas localidades baleeiras, graças à manutenção e recuperação do património baleeiro, nomeadamente, lanchas e canoas.
Como há meio século, o envolvimento da população é enorme e as saudáveis rivalidades mantém-se.
Antigamente, uma canoa ao matar um cachalote, enfiava no dorso do animal a bandeira do bote, sinalizando o grande feito. Hoje o mesmo gesto celebra a vitória numa regata.
No adro da Igreja da Calheta de Nesquim, Dias de Melo, com o cachimbo à “brave sailor”, ali permanecerá recordando às gerações presentes e futuras o amor pelo mar traduzido na sua vasta produção literária muita, propositadamente, acabada no “Alto da Rocha do Canto da Baía”.
1Wellington Castellucci Junior, “Baleias e o Império: os Estados Unidos e a expansão baleeira nos mares do Atlântico Sul (1761-1844)”, rev. hist. (São Paulo), n.180, a10219, 2021, http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-9141.rh.2021.165401
2Sérgio Ávila/Ermelindo Ávila, “A ILHA DO PICO E A CAÇA À BALEIA”, separata da revista INSULANA, Ponta Delgada.
José Gabriel Ávila*
*Jornalista c.p.239 A
http://escritemdia.blogspot.com