Emocionei-me ao ler um desabafo nostálgico de uma sobrinha na rede social, na segunda-feira do Santíssimo Salvador do Mundo. Falava de um passado recente, da sua infância, e por conseguinte da juventude, na pitoresca freguesia da Ribeirinha, de onde resaltava as festas de verão, em honra do seu padroeiro.
Por coincidência, na mesma rede social, vi uma gravação da abertura das celebrações deste ano, na qual o Santíssimo Salvador do Mundo saíu ao adro, aonde foi aplaudido, glorificado e incensado. Uma espécie de cerimónia Ecce-Homo. Lendo por alto os comentários, reparei que alguém (mais do que uma pessoa) queixou-se da pressa verificada em “arrumar” o Santo, depois das honras e louvores. Apraz-me acrescentar que não só a pressa ficou mal, como feia também ficou a aparência do portador da imagem. Aquele homem que a deslocou ao exterior do templo, e voltou a guardá-la na igreja. É que, além de estar mal trajado, teve um momento ou dois em que estava falando alto durante a cerimónia. A comissão das festas devia pensar nisso. Um “furta-gatas” a transportar a imagem do Santíssimo Salvador do Mundo em solenes celebrações é uma falta de respeito. Tanto fica mal para a freguesia, como para os visitantes.
Pondo isto de parte, estas pequenas observações também me levaram aos anos sessenta e setenta do século passado. Às festas, romarias e procissões da minha freguesia, mais precisamente, à Matriz da Ribeira Grande, que embora a Senhora da Estrela seja a padroeira, a festa que mais arromba é a do Sagrado Coração de Jesus, que se realiza no primeiro fim de semana de setembro de cada ano.
Sempre se ouviu dizer que “o melhor das festas é esperar por elas”, e não é mentira nenhuma. Por isso, os preparativos quase sempre começavam uma semana antes. As casas eram lavadas, asseadas e decoradas com verduras perfumantes. Até o chão térreo, das casas pobres, era coberto com folhas de incenso, pequenos galhos de cedro, ou agulhas de pinho. Em vésperas, a massa era sovada e tendida, ou na sexta-feira à noite, ou na manhã seguinte. Porque no sábado à tarde ia para o forno, e só se comia no dia de festa. Era uma delícia para familiares e amigos, acompanhada com um “calzins” de abafado, ou um dezasseis de vinho de cheiro.
Os rapazes da rua, no decorrer da semana que antecedia a festa, seguia visivelmente a montagem da iluminação da fachada da igreja; e na sexta-feira não falhava ao espectáculo da elevação do ornamento principal – o coração.
Toda a semana, o Sr. Raimundo Calouro, sentado numa pequena tábua suspensa numa corda em posição vertical com maquinismo de roldanas, subia e descia o frontal da igreja com a maior facilidade; e era assim que ele afixava os ornamentos da iluminação da frente da igreja. O coração era a última peça a ser colocada, e isso dava direito a um cerimonial. Primeiro o Sr. Raimundo ia para cima na tábua de roldana, e ao chegar à concavidade existente ao meio das duas janelas superiores, metia-se nela, e esperava a subida do coração, que era ali conduzido por duas cordas, que dois homens fortes puchavam através de outro sistema de roldanas, no adro. Quando já não se via o senhor Raimundo era porque ele já conduzira o coração ao sítio preciso, e tratava de o segurar, a modos de nenhum vendaval poder mexer com ele. Serviço concluído, e soltas as duas cordas, Mestre Raimundo sai detrás daquele coração gigante, praticamente exprimido entre os raios e a parede, e desce o frontespício no seu elevador, merecendo uma salva de palmas, por parte da rapaziada.
O bairrismo louvava aquele coração. Porque ele batia, palpitava por todos nós. A luz dos seus raios cintilava. Era uma coração vivo, muito diferente daquela da Conceição, e muito mais do da Ribeira Seca. Não havia outro igual.
O outro electricista que também dava muito nas vistas era o Ildeberto. Mas este, mais nos dias de festa, porque era ele que assumia a responsabilidade de manter a iluminação acesa durante o arraial. Era um rapaz novo, solteiro, bonito e apresentava-se bem. Passava diante das meninas dando a entender que tinha um busca-pólos, na algibeira traseira das suas calças de ganga, ao lado da outra que segurava o alicate universal isolado. Quando avariava uma secção, lá ia o Ildeberto consertar, cheio de mania. Mesmo que o problema fosse só uma lâmpada fundida, ele tinha de usar o busca-pólos, para dar a entender que percebia do assunto. No fundo, bom rapaz. Uma jóia de pessoa, tal como Mestre Raimundo, de quem tinha sido servente. Agora tão oficial quanto ele.
A festa do Sagrado Coração de Jesus também albergava a Comunhão Solene, ou Profissão de Fé. Por isso, no sábado à tarde havia as confissões para as crianças da Catequese. Os rapazes da rua, malcriados, no dizer dos que pensavam ser santos, subindo os degraus da Matriz descarregavam o saco das malcriações. Diziam uma dúzia de porras, e muitas outras pragas ruins, e entravam na igreja. Quando dela saíam já se sentiam santos de pau carunchoso.
Chegava o dia do endoidecimento, na linguagem dos velhos. Para além da música na Cascata, o Bazar; a Barraca da Paulina, nas imediações, onde sempre saía prémio. O primeiro era um tacho. Muitos tachos eram precisos para se conseguir um bom emprego. Chapéus havia muitos, e palermas também. Mais além, os carrinhos de choque; as calafonas de cabelos loiros, fingídos; a Órbita Lunar, e muito mais. Mais perto, os galinhos encarnados espetados num pauzinho, que eram de lamber o focinho; os tremoços e amendoins, o algodão doce, lapas e caranguejos, freiras pintadas e alguma fruta. Tantas guloseimas, que eram só vistas ali uma vez por ano. E muito mais, como as “dólas”, e os primos do Canadá. Belos tempos!
A saída da procissão era, e é, um momento solene. Já várias vezes visitei São Miguel por esta altura, e sempre fiz questão de ir naquele cortejo. É uma magnífica e extraordinária sensação, aquela que a gente sente ao passar em quase todas as principais ruas da freguesia. Embora a esmagadora maioria dos rostos não sejam os mesmos daquele tempo, as casas, mesmo modificadas, transbordam lembranças, aquando da nossa passagem, de um passado recente, mesmo que se sinta longínquo.
Faço sempre o possível, e tenho conseguido, ir perto da imagem, para viver mais intimamente o amor do meu povo pelo Sagrado Coração. As pétalas de flores que das varandas caiem, as palmas, e os olhos molhados dos fiéis, são manifestações que guardamos na alma durante vários dias, após a procissão. Na última vez que me incorporei ainda vi, para além dos tapetes de flores e das colchas nas janelas, um ferro a carvão libertando o perfume dos deuses. Parecia uma locomotiva de comboio, com a diferença na cor do fumo e no cheiro.
Os sinos, sempre com o mesmo repique. Melodia única nos nossos ouvidos. O outro repique é que nunca mais ouvi. Mas ainda guardo no íntimo do meu Ser. Conheci vários sineiros na Matriz, mas nenhum se pode comparar com o José Custódio, que tinha a alcunha de “Pombim”. Quando bebia uma pinguinha a mais, repicava os sinos sem parar, até ficar cansado. Era fininho a tocar a melodia batizada por “Os Sinos da Matriz”. Não sei quem a inventou, mas na década de cinquenta o Prior Evaristo Carreiro Gouveia escreveu-lhe a letra, para ser cantada enquanto os sinos repicavam. Era qualquer coisa como isto:
Os sinos da Matriz
Tocam: delim, delim, delão.
E logo as crianças todas
À igreja se vão.
Delim, delim, delim;
Delim, delim, delão.
Não há em parte alguma
Outra melhor canção
Como a dos nossos sinos
Quando toca o corrilhão
Delim, delim, delim;
Delim, delim, delão.
Agora ficamos por aqui, porque as saudades são muitas, e não vejo a hora de acompanhar, novamente, o Sagrado Coração de Jesus pelas ruas da minha freguesia. Por coincidência, aquela veneranda imagem completa este ano 60 celebrações da sua chegada à paróquia. Veio substituir uma outra, mais pequena. Como disse, há dez anos, o Sr. Padre Manuel Galvão, “Deus é Grande”. Que Ele nos dê saúde e paz, nos cubra de bênçãos, e auxilie os mais necessitados.
Haja saúde!
Alfredo da Ponte, nos EUA