Dupla cidadania, nativismo e o sinal de alarme
para a comunidade luso-americana
De tempos a tempos, surge em Washington um projeto de lei que não pretende governar, e sim enviar um sinal. O Exclusive Citizenship Actof 2025, apresentado pelo senador Bernie Moreno, é exatamente isso — um gesto político destinado a alimentar um eleitorado cada vez mais seduzido pelo nativismo.
A proposta quer banir toda e qualquer dupla cidadania, obrigar milhões de pessoas a renunciar a uma nacionalidade num ano, criar um registo federal de cidadãos com dupla cidadania e considerar “estrangeiros” aqueles que não cumprirem o prazo — incluindo cidadãos nascidos nos Estados Unidos. Afirma defender a “lealdade indivisa”, mas revela, sobretudo, uma visão cada vez mais estreita da América.
Juridicamente, o projeto dificilmente avançará. Contraria decisões do Supremo Tribunal (Afroyim v. Rusk e Vance v. Terrazas) que proíbem retirar a cidadania sem renúncia voluntária e intencional. Administrativamente, é impossível: os consulados não têm capacidade para processar milhões de renúncias em doze meses. Politicamente, não tem apoio bipartidário — e convém lembrar que até a antiga Primeira-Dama, Melania Trump, foi cidadã de dois países. Mas o perigo não está na sua aprovação. Está no clima que o tornou possível.
O projeto expõe uma tendência profunda: a crescente desconfiança em relação a tudo o que é “estrangeiro”, híbrido, plural, ou simplesmente complexo. E é precisamente aqui que a comunidade luso-americana precisa de abrir os olhos. Durante mais de um século, os açorianos cruzaram o Atlântico com uma mala na mão e outra cheia de memórias. Hoje, muitos são cidadãos americanos e portugueses — não por deslealdade, mas por herança. A sua identidade é oceânica, não monolítica.
E aqui surge uma pergunta que raramente nos fazemos, talvez por medo, talvez por hábito: o que significa, realmente, para nós, açoriano-americanos, possuir duas cidadanias? Será apenas uma chave conveniente para entrar e sair das ilhas, um benefício burocrático que guardamos no bolso como quem guarda um seguro de saúde? Ou será, pelo contrário, uma forma de dizer que a nossa história não cabe num único verbo, que a nossa alma tem duas moradas, que a terra dos nossos avós continua a pulsar em nós quando pisamos o cimento das cidades americanas ou as herdades do vasto território estadunidense?
Porque talvez estejamos mais preocupados em perder certas benesses — a facilidade de viajar, a porta aberta da reforma no arquipélago — do que dispostos a admitir que a dupla cidadania, no fundo, é um pacto invisível com aquilo que ainda nos comove. Seremos nós duplos por conveniência ou por saudade? Guardamos dois passaportes porque nos convém, ou porque nos seria impossível cortar o fio que nos liga à oração dos nossos avós, ao cheiro da terra molhada das nossas ilhas, ao rumor do mar que nos fez?
A ameaça a essa segunda bandeira obriga-nos a confrontar esta verdade íntima: a ordem de escolher um só país é, para nós, a ordem de escolher entre duas metades de nós mesmos.E poucos cortes são tão brutais. E também é importante dizer-se que são muitos (centenas de milhares—a vastíssima maioria — através dos EUA) emigrantes e descendentes que estão mais preocupados com a cultura, com o ensino da língua portuguesa nas suas famílias e nas escolas americanas e com a ligação quotidiana aos Açores do que eu com um simples passaporte.
Contudo, segundo a lógica deste projeto, esses mesmos luso-americanos — trabalhadores agrícolas, enfermeiros, professores, empresários, veteranos, autarcas e até netos já nascidos em solo americano — seriam considerados estrangeiros por possuírem também a cidadania portuguesa.
Os impactos seriam profundos, especialmente para quem depende da cidadania portuguesa para aspetos mais do bolso do que do coração, direitos de propriedade ou a possibilidade de regressar à ilha na reforma. Alguns países — Portugal incluído — reconhecem a cidadania por ascendência e não permitem a renúncia nesses casos. Ou seja, o cumprimento seria impossível.
Mas a mensagem é clara: para o novo nativismo, cidadãos com dupla identidade deixam de ser americanos enriquecidos — passam a ser americanos suspeitos.
Aqui reside a verdade incómoda para alguns dentro da nossa própria comunidade: não se pode erguer a bandeira da exclusão e esperar ficar imune aos seus efeitos. Como dizemos americanos: you can’t have your cake and eat it too.
Há luso-americanos — inclusive muitos açorianos ou com origem nas ilhas — que envergam slogans MAGA com orgulho, sem perceberem que o movimento que apoiam olha para eles com a mesma desconfiança com que olha para qualquer outro cidadão de ascendência estrangeira. O mesmo partido que hoje demoniza imigrantes não hesita em sugerir que cidadãos com dupla nacionalidade — mesmo nascidos nos EUA — não são plenamente americanos.
Este projeto-lei é um aviso. Não porque vá ser aprovado, mas porque revela a direção ideológica do Partido Republicano cada vez mais fechado, isolacionista e hostil à própria história migratória dos Estados Unidos. Propostas semelhantes voltarão a surgir. A encosta é escorregadia e cada novo projeto-lei normaliza o impensável.
Para uma diáspora construída sobre a migração, a memória e a pertença a dois mundos, o momento exige clareza. Exige alfabetização política. Exige que rejeitemos narrativas simplistas que apagam a história que nos conduziu até aqui. Os americanos de ascendência açoriana sabem melhor do que ninguém que a identidade não cabe num único porto. Somos feitos de um arquipélago e de um continente, de passado e de futuro. Defender essa pluralidade não é falta de lealdade — é profundamente americano.
E antes que alguém da nossa comunidade vista uma camisola ou use um chapéu MAGA, convém lembrar: o movimento que agora aplaudem pode muito bem decidir que o vosso outro passaporte, a vossa outra língua, as vossas outras tradições,ou os vossos avós nascidos numa ilha no meio do Atlântico, vos tornam menos americanos.
Este é o sinal de alarme. Resta saber se teremos a coragem de escutá-lo.
Diniz Borges