A reunião destas três obras num volume único, sob a designação de O Ciclo da Baleia, representa a concretização de uma sugestão de J. H. Santos Barros em 1977.
Escreveu, então, o poeta terceirense: «Mar pela proa é [o] seguimento natural de Mar Rubro (1958) e Pedras Negras (1964) e poderiam os três livros ser reunidos num único volume que o leitor nada teria a perder. Com efeito, «Ciclo da Baleia» (…) se poderia chamar à mais significativa produção literária de Dias de Melo.» (20 anos de literatura e arte nos Açores. Lisboa, Grupo de Intervenção Cultural Açoriano, 1977, pp. 18-21).
E em 1979, por ocasião dos 25 anos da vida literária de Dias de Melo, Santos Barros voltou ao assunto no Diário de Lisboa (16.07.1979).
Por essa altura, Dias de Melo já publicara Toadas do mar e da terra (poemas, 1954) e ainda Cidade Cinzenta (1971) e Na noite silenciosa, poemas de Natal (1973). Por isso, a designação «Ciclo da Baleia» selecionava três obras do autor, associando-as pelas suas afinidades temáticas e discursivas e estabelecendo entre elas um determinado nexo sequencial.
A designação difundiu-se depois na leitura crítica da obra de Dias de Melo e, ainda em 1979, Tibério Silva publicou na revista A Memória da Água-Viva (n.º 5, pp. 8-13) um extenso ensaio a que deu o título de «O Ciclo da Baleia». O jovem estudante de Direito ocupava-se da trilogia e assinalava, na obra de Dias de Melo, a relevância do contencioso social e o posicionamento do autor, tomando partido pelos oprimidos e explorados, como era o caso dos baleeiros. Mas a importância desse texto resulta ainda do facto de ter suscitado alguns comentários a Dias de Melo, numa carta que nos enviou e foi publicada no número seguinte da revista.
Nela, o escritor dava conta de projetos que gostaria de levar a cabo e onde, afinal, traçava um plano daquilo que viria a concretizar-se na impressionante recolha de Na Memória das Gentes – em três livros e cinco volumes.
Sobre o Ciclo da Baleia, escreveu Dias de Melo que lhe parecia «injusto excluir [dele] a coletânea de poemas Toadas do mar e da terra», acrescentando: «Antes de mais, esta designação aparece como a determinar um certo número de escritos que, na minha vida de escritor, modestíssima, já acabou. Ora, há ainda muitas istórias de baleias e dos baleeiros do Pico por escrever. (…) Daí o me parecer lembrar a quantos tão lisonjeiramente falam do meu «ciclo da baleia» que, provavelmente, este ainda não está encerrado.» (MAV, n.º 6, 1980, pp.37-38). O tempo veio provar que, de facto, o Ciclo não estava encerrado.
Quanto ao primeiro reparo de Dias de Melo: ao contrário do que ele supunha na sua carta, a exclusão de Toadas do mar e da terra não se prendia com a qualidade da obra, mas relevava de um critério facilmente observável: a dimensão narrativa das três obras.
Com efeito, a narrativa, com as suas particularidades discursivas, possibilita a criação de universos complexos, abrindo caminho à transfiguração de mundos conhecidos.
Ora, foi principalmente através da narrativa que Dias de Melo nos deu a conhecer o universo da baleação picoense, embora a dedicação a uma causa que tomou como sua o tenha levado igualmente a investigar a história dessa atividade e o perfil de algumas figuras que a ela ficaram indelevelmente ligadas.
O Ciclo da Baleia reúne três obras relativamente díspares quanto à amplitude dos seus universos e quanto ao seu estatuto literário: da narrativa de Pedras Negras e Mar pela Proa à crónica de Mar Rubro, com a sua liberdade discursiva, do narrativo ao descritivo, à evocação e ao retrato, num registo em que a atitude autoral de empatia para com a matéria da crónica se traduz numa certa aura mítica que envolve acontecimentos, objetos e pessoas, procedendo a uma espécie de «sagração» de figuras que ultrapassaram condicionalismos vários e atingiram o estatuto de «heróis».
Aliás, nas sucessivas tábuas bibliográficas que integram a obra de Dias de Melo, Mar Rubro aparece sempre com a classificação de «crónicas romanceadas», o que parece significar o reconhecimento de um certo grau de efabulação que as atravessa. E tendo em conta a sua composição parcelar e atomizada, poderemos talvez falar de Mar Rubro como um «romance fragmentário», cujas peças se interligam e obedecem a um determinado propósito composicional.
O livro abre com o episódio dinâmico da arriada à baleia, seguindo-se a delimitação do espaço («Terra de baleeiros», pp. 41-43) com a identificação dos seus polos de referência, entre eles, a casa dos botes (importante para o registo de um tempo específico) e a caracterização de um modo de vida, entre o mar e a terra, a permanência e a partida: «Terra de baleeiros – vida de baleeiros.»
Na sua aparente dispersão, as crónicas de Mar Rubro articulam-se por uma subtil relação de contiguidade: personagens de maior ou menor relevo, episódios de teor diverso relacionam-se entre si por um elemento comum: ocorrem em terra de baleeiros e tipificam a vida de baleeiros, compondo o vasto panorama de um tempo e de um lugar.
Apesar de obra autónoma, Mar Rubro configura, assim, o espaço e o «ambiente» de onde sairão as histórias que suportam as «narrativas maiores» Pedras Negras e Mar Pela Proa.
Pedras Negras ocupa um lugar central no ciclo da baleia e direi mesmo na obra de Dias de Melo.
Já o escrevi noutro lado, e por isso vou citar-me: «Em Pedras Negras está a transfiguração literária de todo um mundo insular num tempo determinado, um mundo ameaçado pelas contingências do presente e pela memória do passado (…)
Está lá, em Pedras Negras, o sonho com outros mundos e a revolta de quem se sente expulso da própria ilha, e ainda essa experiência fundamental da descoberta do outro que a viagem proporciona; está lá o gesto solidário no microcosmo multicultural da baleeira Queen of the Seas, mas também a versão açoriana do «homem lobo do homem» na figura do emigrante Albano Passarinho, exemplo lapidar de como a vítima de ontem pode tornar-se o carrasco de hoje. E, traço relevante, trata-se de uma narrativa (também) do regresso, coisa não muito frequente no contexto açoriano.
«Neste caso, o regresso permite o ajuste de contas entre a Ilha e o rebelde Francisco Marroco, que ousara desafiar o destino insular: “Não é a terra do Pico que me há de roer os ossos”, afirma Francisco Marroco, antes de embarcar clandestinamente na barca baleeira que o levará à América (p. 176).
«E, como se sabe, toda a ousadia será castigada.
«O tempo retomará o seu ciclo destruidor, voltarão as secas, as fomes e a morte; a inveja e os negócios sujos completam a destruição natural: o protagonista será aniquilado, a punição atingirá culpado e inocentes, à maneira da tragédia grega.» (U. Bettencourt, Sala de Espelhos, p. 164).
No final, os baleeiros, entre eles, António Marroco, filho de Francisco, acabam presos nas Lajes, vítimas do conluio entre o Delegado Marítimo e Chico Gaudêncio, proprietário da «Armação Baleeira União e Fraternidade».
Do ponto de vista de causalidade narrativa, a intriga de Mar Pela Proa decorre deste desenlace de Pedras Negras.
Vendo as suas soldadas roubadas pelo armador, presos em seguida por reclamarem os seus direitos, os baleeiros tomam posteriormente, uma vez libertos, a decisão de fundarem uma companhia que seja só deles e lhes permita controlar os meios e o processo de trabalho.
«Mas, o mestre bem sabe, a gente jurou nunca mais pôr os pés em botes que fossem do Chico Gaudêncio…» (p. 305), afirma António Marroco, durante a viagem em que os baleeiros trazem do Cais do Pico para a Calheta a lancha e os botes comprados para a sua Companhia Nova.
Será uma viagem trágica: a súbita alteração do tempo destrói o sonho de todos, com naufrágio e mortes, três baleeiros arribam a S. Jorge, um à Terceira.
A narração acompanha o percurso dos homens que se salvaram, no ritmo ora desabrido dos botes levados pelo vento e pelo mar, ora mais distendido nos momentos de retrospetiva, e num dramatismo que alterna a presença da morte e a luta pela sobrevivência com a rememoração de episódios pessoais e lança luz sobre outros que em Pedras Negras tinham sido elididos.
Como explica o autor no documento que encerra o volume, Mar pela Proa recupera para o domínio da ficção o episódio ocorrido no canal de S. Jorge – Pico em março de 1923 (o Desastre do Canal).
Mas não se trata de uma simples transposição ou recriação: algumas personagens de Pedras Negras «migram» para Mar pela Proa, entre elas, António Marroco; além disso, Dias de Melo pôs de lado a cronologia e transpôs para a década de quarenta o episódio dos anos vinte.
É uma forma de homenagear vítimas e sobreviventes do desastre de 1923 e de estabelecer uma conexão narrativa entre Pedras Negras e Mar pela Proa. Mas é também um traço ideológico que aponta uma solução, depois de ter denunciado a degradação das relações laborais no mundo da baleação (ver a p. 352). No fundo, uma escrita de compromisso com os homens e o seu tempo, como Dias de Melo escreveu na «Nota de Abertura» em Mar pela Proa.
A edição deste Ciclo da Baleia, com um elucidativo e útil Glossário e um belo aspeto gráfico, a que acresce o retrato de Dias de Melo por Tomaz Borba Vieira, representa um passo importante para a redescoberta escritor e pode constituir um bom sinal, neste momento em que falta menos de um ano para o centenário de nascimento do autor.
MELO, Dias de (2024), O Ciclo da Baleia. Mar Rubro, Pedras Negras, Mar pela Proa. Coordenação e nota editorial de Luiz Fagundes Duarte. Lisboa, Imprensa Nacional.
As referências e números de página remetem para esta edição.
Urbano Bettencourt