“Fez a travessia para a Ilha de Santa Catarina numa sexta-feira – porque bem sabemos que a vida começa às sextas-feiras – ouvindo a ondulação contra a quilha em encontros suaves, como se o mar a quisesse lembrar de casa. Na verdade, depois de desembarcar, foi como se estivesse de regresso aos seus Açores.”
Pedro Almeida Maia, A Escrava Açoriana
“Olá Lélia, sei que partes amanhã cedo, apesar do horário tardio, vou passar aí pra deixar o meu novo livro, A Escrava Açoriana. Minutos depois, o recepcionista do São Miguel Park Hotel, a minha casa nos Açores, anunciava o escritor Pedro Maia na “receção”. Ainda guardava na memória o delicioso romance Ilha-América sobre a extraordinária aventura do adolescente micaelense que, partindo da Ilha de Santa Maria, viajou escondido na aterragem de um avião. Uma história que parece inverosímil, todavia é baseada em acontecimento real ocorrido há 64 anos. Recordo quando o saudoso Daniel de Sáme enviou um recorte do Portuguese Times, de 1960,noticiando a travessia transatlântica de Daniel Corrêa Melo.
Quanto A Escrava Açoriana… Li de um fôlego as 220 páginas durante o voo de retorno ao Brasil. Mergulhei na sua leitura, envolvida com a determinação de Rosário e o desejo de sair, abandonar as raízes – “a ilha escorraça a gente”, escreve Dias de Melo no icónico Pedras Negras (1964). Espantoso, impactante do princípio ao fim! Um enredo traçado em minúcias, fruto de cuidadosa investigação histórica do fenômeno migratório dos anos oitocentos até as primeiras décadas do século XX. Está tudo naquelas páginas, a sociedade tacanha de uma Ponta Delgada rural, miserável, famélica, onde ao homem tudo é permitido, espelhando na misoginia social a condição da mulher em sua luta constante para vencer os estereótipos sociais e culturais, superar barreiras e merecer a vivência plena do amor.
Para uma mulher naquele tempo testicular, a sorte e o respeito
vinham a conta- gotas: pingos de suor a cada hora, lágrimas
salgadas a cada dia, respingos de sangue a cada lua.” (p.19).
No prólogo, o retrato da personagem central com todas as nuances… Adiante o cerco da palavra ficcionada a brilhar entre o bem e o mal, entre a aventura e a desventura, entre o cair e o dar a volta por cima e recomeçar, ou seria “se (re)inventar” com as marcas da falênciado sonho brasileiro?
Rosário é a protagonista, a adolescente, a mulher destemida, em busca do seu universo mítico, longe das amarras sufocantes de sua Ilha de São Miguel. A Escrava Açoriana tem por cenários as cidades de Ponta Delgada, do Rio de Janeiro e a Vila de Nossa Senhora do Desterro, na Ilha de Santa Catarina. Sob a roupagem da ficção, Pedro Maia, numa prosa elegante, madura, consistente, escorreita, cativante e de grande fluência e sensibilidade, constrói o seu brilhante romance fundamentado em fatos verídicos ocorridos numa época marcada pela escravatura branca, o comércio sórdido de seres humanos, o tráfico de homens e mulheres açorianos que, ludibriados por promessas de trabalho e prosperidade no Brasil, foram espoliados, escravizados e prostituídos na terra que deveria ser de acolhimento.
A busca de quimeras, da melhor condição de vida e do pai brasileiro que nunca mandou notícias, “nem por carta, nem por mandato” foram razões de sobra para alimentar as motivações coloridas e imaginadas no Novo Mundo e de cunho vital para Rosário e sua mãe Adelaide. Uma arapuca armada nas mãos do aliciador safado, brasileiro com o sotaque de açúcar, a prometer mundos e fundos e adoçar a esperança de superação da miséria.
Ao partir, leva a mala, o terço e o livro Amor de Perdição (1862), obra prima romântica, passional, do escritor português Camilo Castelo Branco. Tatuada no coração a imagem de Josué, o amor que ficou na Ilha e a sua promessa – Segue com a tua mãe para o Brasil…e eu depois vou…vou ter contigo. (p.47). Tal qual a saudade do pio do milhafre, esses elementos significativos acompanham Rosário terras de Vera Cruz.
Pedro Maia soube contar com maestria o deambular de sua personagem pela grande Ilha Brasil – a mulher desvirginada, a criada, para todos os ofícios, a “ilhoa” prostituta e a escrava branca discriminada na Senzala e explorada na Casa Grande.
Debruçada na balaustrada do Lidador, Rosário contempla a beleza do Rio de Janeiro – a cidade maravilhosa. Mal sabia ela que, toda aquela maravilha, escondia duas cidades imbricadas, entrelaçadas e socialmente distintas na sua configuração humana, econômica e cultural. O autor conduz a protagonista para o lugar que lhe cabia – “os refolhos da cidade”. Rosário agora faz parte da outra cidade, a embutida na maravilhosa – das ruelas, pobreza, violência dos cortiços e prostíbulos, a vida na mais baixa gradação social.
A Escrava Açoriana traz uma historiografia bem delineada como pano de fundo, sendo um romance de costumes, de estados d’alma, de identidade. Ali perfilam a submissão, a sujeição, a melancolia, o assédio moral e sexual, o fatalismo. A Rosário, do Pedro Maia, mesmo tendo uma vida violada é uma mulher forte, resiliente. Para a Ilha Mãe voltam seus pensamentos, suas batalhas, sem vergar e nem desistir.
O maior exemplo está na sua incessante busca do pai desconhecido e o seu reconhecimento impossível num desenho à carvão encontrado nas mãos de um vendedor de arte de Santa Catarina, “seu freguês de cama.” Pedro Maia, com a suave tessitura da narrativa ágil, mexe com o imaginário do leitor e deixa crescer a ideia idílica que Rosário vai encontrar, finalmente, o seu progenitor por lugares da emigração no Sul do Brasil.
A Escrava Açoriana na Ilha de Santa Catarina! Afinal, a Ilha foi o destino de milhares de açorianos, entre 1747 e 1756, com a missão de povoamento. São os pioneiros açorianos, “os construtores” de um patrimônio cultural sobrevivente há 276 anos. A descrição da Vila de Desterro com o casario em volta da praça, a Igreja matriz com duas torres, a cordialidade e gentileza dos moradores, a grandiosidade do verde esgueirando-se morro acima, numa epifania cromática infinita e aquele mar azul estonteante das baías é perfeita. Pedro Maia desenha na aquarela das palavras a beleza da Ilha que a Escrava Açoriana extravasa encantada (ps.122,123,124). Como era possível que tivesse levado a vida toda a postergar uma ida àquele outro Brasil? O desfecho inesperado em frente à Igreja de Nossa Senhora das Necessidades, na freguesia de Santo Antônio de Lisboa, decepciona, a esperança desaba. Entretanto, era preciso continuar…
O regresso ao Rio de Janeiro, novas desventuras, a perda da mala, do terço e do livro e a nova morada – a senzala, os desgostos e as chibatadas. Dores do corpo agredido, mais as cicatrizes do espírito e o pungir do espinho da saudade. Queria ouvir o pio do milhafre outra vez. Enrolou o terço na mão e começou a rezar. Pediu para retornar (p.164).Porque a Ilha chama a gente, torno a citar Dias de Melo.
A Rosário que regressa sete anos depois é uma nova mulher, reconstruída sobre as mazelas e injustiças, renascida na dor, liberta e frontal, dona da sua voz. Ela podia se quisesse lutar pelos seus direitos e por mudanças sociais. Lutou! É o que se vê até o ponto final, já adentrado no século XX, a história a repetir-se com a debandada dos açorianos para América. Rosário vê os seus partirem rumo ao Novo Mundo. Observa silenciosa a azáfama no cais, torcendo pelo futuro. No epílogo, a genialidade na arte de contar histórias permite que, a sensibilidade de Pedro Almeida Maia, faça A Escrava Açoriana se entrecruzar com Os Emigrantes, a bela arte pictórica de Domingos Rebelo, junto ao Cais Novo, fixando na tela branca os elementos cênicos do instante da partida.
Uma história iniciada em 1837 e que seguiu até 1925, passada em lugares e épocas distintas, sendo narrada pela filha da Rosário, A Escrava Açoriana. O escritor Pedro Almeida Maia impressiona com seu domínio absoluto da arte de contar, a rica imaginação e a alma prenhe de sentimentos. Contudo esta é uma história sem fim… que continua se reproduzindo e ainda se faz presente na margem de cá e por outras latitudes e hemisférios com novos emigrantes e sob novas fantasias.
Ouso dizer que em seu novo e premiado romance A Força das Sentenças, Pedro mantém o elo temático da emigração. Um jeito solitário do protagonista, doente de Alzheimer, viajar por suas memórias, a emigrar para dentro de si, quiçá em busca de sonhos perdidos.
Bem haja, Pedro!
Lélia Nunes *
- Presidente da Academia Catarinense de Letras,Cadeira 26
Investigadora/Researcher – CHAM-Açores/ Nacional
Universidade da Madeira UMA Portugal.