“Na época em que viveram não se falava ainda nas mudanças climatéricas que hoje são o foco de estudo da comunidade científica ajuizando os riscos existenciais do nosso planeta. O fim do mundo como tópico alarmante, ou talvez expetativa ditada pela fé, aparecia só além-fronteiras nas predições de grupos religiosas ainda então ignoradas nos Açores.”
Maria Olívia Rego (1906-1976) na sua ascendência micaelense tinha o tronco genético na cepa dos Gaudêncio. António José da Silva (1890-1957), pertencia a uma família oriunda de São João da ilha do Pico e da freguesia faialense de Flamengos. Estes indivíduos não se conheciam; os seus passos nunca se cruzaram. De ambos, porém, ouvi várias vezes que «o mundo principiou com fogo e água e com fogo e água acabará».
Na época em que viveram não se falava ainda nas mudanças climatéricas que hoje são o foco de estudo da comunidade científica ajuizando os riscos existenciais do nosso planeta. O fim do mundo como tópico alarmante, ou talvez expetativa ditada pela fé, aparecia só além-fronteiras nas predições de grupos religiosas ainda então ignoradas nos Açores.
Aquela frase misteriosa reflete uma profunda ressonância cultural e filosófica. As suas raízes aparecem em textos religiosos e no eco mitológico de narrativas primais no seu percurso milenário. E na memória histórica, escrita e oral, além da sabedoria multigeracional e intuitiva do povo. A sua permanência transcultural dá-lhe relevo no atual contexto do aumento global, progressivo, das catástrofes climáticas. De acordo com o Centro Nacional de Informação Ambiental dos Estados Unidos da América, de 1980 a 2024 houve 400 desastres atribuídos às alterações e deterioração dos sistemas orgânicos do planeta. As perdas materiais ascendem acima de 2.78 trilhões de dólares.
Na generalidade, as tradições religiosas recordam cenários apocalípticos envolvendo fogo e água. Na Bíblia, o fogo simboliza o julgamento divino, como na destruição de Sodoma e Gomorra. A água significa limpeza e renascimento, sintetizados no dilúvio de Noé. Os católicos acolhem os novos membros na pia batismal vertendo um pouco de água sobre as suas cabeças. Reencenam de modo alegórico o batismo de Jesus por João Batista no Rio Jordão. Como os israelitas haviam cruzado aquele curso de água para entrar na Terra Prometida, no batismo os cristãos transitam purificados para uma nova vida de serviço a Deus.
Na cosmologia hindu, Pralaya refere-se à obliteração cíclica do mundo sob os efeitos tempestuosos dos mesmos elementos terrenos. O Ragnarök da mitologia nórdica menciona também as chamas de Surtur, líder das forças do caos, e inundações que põem termo à vida no planeta. Estas narrativas, recontadas através de gerações, revelam o receio subjacente da humanidade sujeita às forças deletérias da natureza aleatória que se agregam na evocação do parto sempre renovado do átomo primogénito.
O psicólogo Carl Jung (1875-1961) reconheceu no fogo e na água os arquétipos que representam transformação e renovação. Em todas as culturas, estas estruturas constituintes da cognição do universo primordial entrelaçam-se em estórias expressando a ideia de instabilidade cósmica. Entre os cristãos, como o Armagedão, esta finalidade tem um propósito divino e punitivo.
O fogo incorpora energia e destruição. A água simboliza a vida e o caos. Ambos funcionam como metáforas definindo a fragilidade existencial da humanidade. As tradições orais provavelmente preservaram estes símbolos, incorporando-os na memória coletiva.
Eventos catastróficos envolvendo fogo e água, como erupções vulcânicas que desencadeiam maremotos, reforçaram estas estruturas do inconsciente coletivo de Jung. Neste contexto, as erupções de Santorini (~1600 a.C.) e Krakatoa (1883) combinaram a fúria do fogo com a devastação da água, influenciando mitos locais e narrativas que se escutam ainda por todo o Mundo. Da mesma forma, antigos mitos do Dilúvio Universal, desde a Epopeia de Gilgamesh — legada em carateres cuneiformes da Mesopotâmia por volta de 2100 a.C. —, até às tentativas de Gun-Yu para controlar as enchentes na China no terceiro milénio anterior a Cristo, ecoam as lutas intermitentes da humanidade com tais forças.
Em 1775, fogo e água destruíram Lisboa numa calamidade que muitas vítimas — que escaparam ao tsunami monstruoso entre os escombros —, interpretaram como um anúncio do fim do tempo. Nos Açores, o fogo de vulcões deixou na memória coletiva alguns dos momentos de terror experienciado pelas populações. No Canal de São Jorge, em meados do século décimo oitavo, uma erupção submarina trouxe a lava rubra à superfície do mar. Em pânico, a gente do Faial julgou que chegara aos seus últimos dias com o oceano em fogo. Num Império do Espírito Santo junto ao edifício da Associação Amor da Pátria, na Horta, aquelas circunstâncias são perpetuadas para as gerações subsequentes meditarem no percurso da modernidade do pensamento.
Há quem propaga que o alegado oráculo parece presciente perante as mudanças climáticas que agora se confrontam. O aumento das temperaturas alimenta incêndios florestais de dimensões monstruosas, enquanto a intensificação das tempestades e o derretimento dos glaciares agravam as cheias. Este alinho entre as advertências antigas e a ciência moderna sugere que as primeiras gerações, embora carecessem de compreensão científica, reconheceram o potencial ruinoso do fogo e da água.
Não sei como a Olívia e o António tiveram conhecimento daquela crença antiga. Ouviram-na talvez dos anciãos que os precederam. Reflete neste contexto a vulnerabilidade da espécie humana aos extremos da natureza, decorrente quiçá de séculos de observação e exposição às estórias que se contavam antes de a televisão fazer esquecer os serões em família. Transmitidas através das tradições orais, as frases possuem significado, mesclando crenças religiosas, deduções ambientais e reflexões metafísicas.
Filósofos como Henri Bergson (1859-1941) postularam que a intuição poderia revelar verdades mais profundas, enquanto o conceito do inconsciente coletivo de Jung sugere conhecimento psíquico compartilhado por processos até agora rejeitados pelos adversários do instinto e da noção da tabula rasa em contraste com a aprendizagem. A profecia pode emergir de uma conexão intuitiva com os ritmos da natureza, uma previsão mística preservada através de linguagem figurada desde o século vigésimo antes da nossa era cristã.
Num mundo cada vez mais moldado pelo fogo e pela água, esta ideia milenar convida-nos a refletir sobre o lugar da humanidade nos ciclos da natureza. Oferece-nos uma ótica que transcende o tempo, talvez o dedo inquisidor e subconsciente da sobrevivência da espécie apontando que somos responsáveis pela degradação da integridade do veículo sideral em que navegamos no espaço celeste.
Manuel Leal