Eduíno de Jesus, crítico de artes e letras
Aos amigos de Eduíno
No artigo anterior, referi-me à colecção Arquipélago, criada e alimentada por Eduíno de Jesus e Jacinto Soares de Albergaria junto da Coimbra Editora e do Instituto Cultural de Ponta Delgada, que foi responsável pela publicação consecutiva — e com valiosos estudos críticos — da obra poética de Armando Côrtes-Rodrigues (1956), Madalena Férin (1957) e António Moreno (1958), entre outros. Esta única acção de rasgo em muitos anos antecipou três décadas o esforçado trabalho da editora Salamandra, de Bruno da Ponte (1932-2018), que editou muitos autores açorianos e imprimiu duas ou três centenas de livros entre 1980 e 2010 (e bem merecia uma exposição biobibliográfica, que nunca teve) e, verdade seja dita, também a colecção Gaivota, da Direcção Regional de Cultura e seus variados acrónimos ou avatares, que dinheiros públicos nos primórdios da autonomia política permitiram fazer (e hoje deveria ser património público, de acesso digital livre; mas não, pois isso dava algum trabalho que ninguém faz nem ninguém manda fazer!…).
Porém, mais do que essa intervenção editorial, ou a sua própria obra poética, o que distingue Eduíno nesses anos já tão distantes é a sua produção crítica espelhada em suplementos de jornais, em revistas ditas de facção (por exemplo, Graal de António Manuel Couto Viana e António Vaz Pereira, 4 números em 1956-57; ou Bandarra, publicada no Porto), em prefácios a livros de poesia e até em catálogos de exposições de arte, em especial do seu grande amigo o pintor Artur Bual (1926-99), e sem qualquer dúvida nos programas televisivos quinzenais «Convergências» e Livros & Autores», mantidos de 1969 a 1974 (e que, lamentavelmente, já não podemos ver no Arquivo RTP).
Na Bibliografia Geral dos Açores, organizada por João Afonso ao longo dos anos 1980 (e cuja letra «J» só este ano foi a prelos…), há considerável registo dessa intervenção de Eduíno, mas só duma pequena parte dela, como pude constatar recentemente, havendo, portanto, um inventário completo que ainda está por fazer. Mas é, em todo o caso, uma assinalável demonstração de capacidade crítica com particular incidência sobre drama e lírica, mas também de participação — e de vontade de participação — em debates teoréticos sobre a criação literária ou artística como expressão humana, o que implica um lastro de leituras que claramente transcende o horizonte do leitor médio, razoavelmente informado. A um trabalho publicado na revista Contravento. Letras e Artes (Porto, 1968-71), chamaria Daniel Pires «rigoroso ensaio sobre a dicotomia arte pura versus arte comprometida». De tudo isto resultou ainda a sua extensíssima, invulgar colaboração na Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura, com 21 volumes publicados pela Verbo entre 1963 e 1995, em particular no que ao mundo do teatro e da dramaturgia diz respeito.
Nascido em Janeiro de 1928, Eduíno de Jesus é seis anos mais novo do que Pedro da Silveira, que nesse período somava assinalável produção crítica lançada em periódicos de Lisboa e do Porto, e tão-pouco é fantasioso dizer que o protagonismo do angrense Jaime Brasil (1896-1966) no jornalismo cultural português facilitou a chegada de outros e «novos» açorianos ao contacto com os editores de imprensa. Norberto de Ávila (1936-2022), por exemplo, também escreveu, como Eduíno, para o Diário de Notícias nos anos 1960, na boa página semanal coordenada por Natércia Freire.
Em 1959 Eduíno publicou no Arquivo Coimbrão, n.º 17, «Influências de Ponta Delgada e Coimbra no espírito de Antero de Quental» (um título que foi obliterado na impressão), um artigo de 11 páginas que é afinal — note-se bem!! — nada menos do que o seu discurso na inauguração do busto de Antero no Parque da Cidade (actual Parque do Mondego) de Coimbra, a 23 de Novembro de 1958, um trabalho artístico de Diogo de Macedo gentilmente cedido pela Câmara de Lisboa à de Coimbra. O nosso nonagenário autor e amigo é apresentado pela publicação da Biblioteca Municipal de Coimbra como «estudante micaelense», mas o alcance do seu pensamento é seguramente mais o de um professor, ou dum erudito — ainda que com apenas 31 anos de idade.
Não é possível transcrever aqui e agora senão passagens mais significativas desse trabalho, esperando que, como muitos outros, ele possa vir a ser publicado em vida do autor e sob a sua orientação e preferência. E deste modo, esta minha página não pode deixar de ser um apelo a Eduíno de Jesus e aos seus mais próximos — mas também às entidades públicas regionais, do município de Ponta Delgada ao governo regional e à assembleia legislativa — para que essa campanha editorial seja posta em marcha quanto antes e frutifique a breve termo. No dealbar dum novo ano, quiçá dum recomeço (ainda que imaginário…), que bons planos de trabalho sejam postos sobre a mesa. Não acredito que seja assim tão complicado quanto isso…
Vasco Rosa
[…] É verdade que nasci na mesma ilha de Antero e durante vinte anos não conheci outra cidade além da onde nasceu e morreu aquele que, no arquipélago, todos chamamos «o maior açoriano». Conheço relativamente, por isso, o habitat da infância de Antero (e digo «relativamente» porque cem anos, sobretudo cem anos no século XX, contam muito na fisionomia de uma cidade), como relativamente conheço Coimbra, onde Antero passou a adolescência e os primeiros anos da juventude. Mas escusado será dizer que este conhecimento é insignificante para a exegese da obra de Antero de Quental, pois a filosofia e o apostolado social e ético do corifeu da Escola Nova de Coimbra mostram o pouco que devem à fisionomia urbanística, à situação geográfica, enfim ao ambiente cósmico regional de Ponta Delgada, onde viveu até aos 13 anos (com uma breve interrupção no ano 1852-3, em que frequentou, durante alguns meses, o colégio do Pórtico, em Lisboa, dirigido por Castilho), e a Coimbra, onde viveu dos 14 aos 23 anos. A sua obra poética, de um puro lirismo, apesar das implicações intelectuais, e a filosófica (incluída a sociológica e política), de informação literária e estrangeira, bem pouco reflectem a influência do meio físico, ainda que vários e eminentes autores, nomeadamente Aristides da Mota, Vitorino Nemésio e Ruy GaIvão de Carvalho — para não citar senão autores açorianos — tenham procurado relacionar certas características do estilo e da idiossincrasia do poeta com determinadas peculiaridades do ambiente geográfico da ilha de São Miguel, sobretudo com a influência do mar. A meu ver, a frequência, na poesia de Antero, de certas comparações, das quais um dos termos é o mar, ou as suas muitas referências a esse elemento que, na verdade, caracteriza as paisagens insulares ou litorais — não particularmente a paisagem açoriana —, nada adianta sobre a influência do ambiente físico de São Miguel na sua obra, dado que o verdadeiro significado da influência do mar numa literatura, particularmente numa literatura insular, devia traduzir-se na expressão de um sentimento de isolamento e de um indefinível desejo de evasão, e não, como em Antero, restringir-se a um simples recurso imagético, comum, este, a todas as literaturas que florescem na vizinhança do mar, como, por exemplo, a portuguesa. Tão-pouco a influência do mar na obra de Antero adquire o significado de atlantismo que, à missão de Portugal no mundo, concede, no panorama das histórias e filosofias nacionais europeias, um lugar ímpar, definitivamente conquistado pelas descobertas e concomitante acção missionária do século XVI e pelos Lusíadas.
Verdadeiramente, o mar não interessa à exegese do pensamento nem da poesia de Antero de Quental. E se não interessa o mar, que define a paisagem onde se enquadra a infância de Antero e condiciona a história da formação da pátria a que pertence, é difícil descobrir outro aspecto da paisagem com influência no poeta dos Sonetos. A caracteristicamente romântica paisagem de Coimbra, por exemplo, não fez de Antero um romântico; pelo contrário, em Coimbra Antero procurou superar a formação romântica que trazia da ilha. Aliás, nem o romantismo nem o ultra-romantismo são escolas coimbrãs, mas movimentos subsequentes ao liberalismo, foi no Porto, o Porto burguês onde se constituiu o Sinédrio e de onde partiu em 1820, que tiveram o seu berço, com Almeida Garrett, e o seu leito mortuário, com Soares de Passos e os seus discípulos e epígonos, embora fosse em Lisboa, com o venerando e venerado Castilho e a sua corte (Tomás Ribeiro, Pinheiro Chagas, etc.), que o romantismo tivesse tido a sua fátua vida postumular. […]
É certo que em Coimbra o pensamento religioso e social de Antero sofreu um colapso, mas quando saiu desse colapso foi para afirmar a supremacia do cristianismo como religião e definir a revolução não como guerra mas como paz, não como licença mas como ordem. Por isto, eu preferi designar por evolução a revolução intelectual e moral que se operou no espírito de Antero sob a influência do ambiente espiritual de Coimbra, visto que não houve propriamente uma transformação definitiva, mas um aprofundamento de conceitos, um aprofundamento que, algumas vezes, atingiu as raias do paradoxo. Note-se que Cristo, cuja lição de humanidade aprendera dos lábios maternos, pertenceu sempre à tríade dos eleitos na devoção de Antero; que o povo, que aprendeu a amar na obra de Eugène Sue [1804-57], lida na infância, o atraiu sempre como sociólogo; e que Alexandre Herculano, com os seus ritmos largos como a ondulação do mar e a sua inspiração religiosa que, aos 10 anos, o deslumbrar-a, se sobrepôs sempre, na sua admiração, a todos os poetas. A influência do ambiente espiritual de Coimbra em Antero foi, portanto, menos revolucionária do que catalítica, continuou mais do que destruiu a sua formação intelectual e moral, embora os efeitos dessa catálise e dessa continuação — como, no organismo de um doente, a reacção a certos medicamentos — tenham ao princípio revestido um aspecto negativo. Foi em Coimbra, no entanto, que o poeta desencadeou contra Castilho e as «capoeiras literárias» da época a famosa polémica que se chamou depois Questão Coimbrã e que «foi o ponto de partida para a actual evolução da literatura portuguesa», como fez notar na citada carta autobiográfica o próprio Antero. Em Coimbra, onde Antero foi um chefe, o paradigma de uma geração desnorteada, mas ávida de saber e interessada nos destinos da humanidade, generosa até ao sacrifício, embora agindo algumas vezes menos logicamente, o poeta açoriano sentiu que era a hora de sair do seu isolamento, de descer à liça, de entrar na luta, de permitir a expansão do «espírito revolucionário» contra a «natureza conservadora». Eis o verdadeiro sentido de Coimbra na vida de Antero.
Ponta Delgada está ligada a Antero por laços de vida e de morte; mas em Coimbra foi a primeira tomada de consciência da vida e da morte em Antero. Nenhuma das outras cidades por onde o poeta deambulou ou onde permaneceu por um tempo mais ou menos longo decidiu tanto do seu destino como esta. Homenageando-o hoje, e tão significativamente, Coimbra salda uma dívida antiga. Antero merecia esta homenagem.
Vasco Rosa
Eduíno de Jesus
Arquivo Coimbrão, nº 17, Janeiro-Junho de 1959. Excertos