Edit Template

Um livro de viagens aos Açores contra a massificação do turismo

Foi em 2021 que o viajante Joaquim M. Palma escreveu e publicou estas Impressões Insulares. Nos Açores com o quinhentista Gaspar Frutuoso (Companhia das Ilhas, Lajes do Pico, 317 pp., 16,99 €) explicitamente acompanhado das famosas mas hoje em dia pouco lidas Saudades da Terra do padre Gaspar Frutuoso (mais discretamente de As Ilhas Desconhecidas. Notas e paisagens: v. pp. 179, 181, 183, 195, 223, 247, 316, 317). Num primeiro momento, fui levado a pensar — imaginar ou desejar — que se trataria de obra capaz de rivalizar com ou destronar os clássicos de Brandão e Nemésio, já bem velhinhos de 1927 e 1956, renovando por fim o quadro de referência para quem queira viajar até lá já munido de boas leituras actualizadas. Fechado o livro, a conclusão não pode ser essa. Os méritos do autor que havíamos notado em Doze Fronteiras. A raia luso-espanhola percorrida em toda a sua extensão (Documenta, Outubro de 2020, 318 pp.) não se trasladaram para o meio do Atlântico norte, ainda que Palma se diga «apaixonado por ilhas que vão resistindo ao nivelamento bacoco do low-cost» e, aparentemente, a sua visita aos Açores seja habitual: a primeira foi ao Pico, há quarenta anos (p. 218), e o próprio Impressões Insulares resulta de «várias estadias» nas ilhas entre 2000 e 2019 (p. 7).
A chancela Companhia das Ilhas — uma das melhores pequenas editoras no nosso panorama nacional —, em que o livro foi a imprimir, dá garantias de escolhas acertadas e duma intencionalidade atenta. De facto, a súbita massificação do turismo naquelas ilhas encantadas tornou-se um imbróglio socioeconómico difícil de desatar e que é muito mais grave do que matar a galinha de ovos d’oiro que dum salto apareceu no fundo do quintal, desta vez oceânico. O assunto é de tal maneira gritante — e dum aqui e agora evidente — que é bom que editores estimulem ou participem dum debate sobre os efeitos duma inversão de escala tão radical como esta, em que uma contínua e acentuada desertificação humana na maioria das ilhas açorianas choca de frente com a invasão sazonal de muitos milhares, que depois não encontram, nem verdadeiramente poderiam encontrar, infra-estruturas capazes de lhes proporcionar razoável e cómodo acolhimento.
Mas isso não é tudo, nem poderia ser: o que aquelas nove ilhas dão a cada um de nós em deslumbramento, e reclamam em introspecção, não se compadece com o colapso do quotidiano de quem está e também de quem chega, nem com o abusivo aglomerado de magotes de gente em cenários naturais em que a solidão e o silêncio oceânicos dominam e dominarão sempre, antes e depois do ciclo turístico estival, e que por serem patrimónios naturais únicos e irrecuperáveis não podem ser sujeitos a devastações e prejuízos de qualquer tipo. Abastecimento deficiente, preços inflaccionados, maior poluição terrestre e marítima por brutos (pois esses nunca faltam…), erosão de trilhos pedestres, pesca lúdica descontrolada e predatória, avidez comercial (que por ora a pandemia intimidou ou já estraçalhou), acelerada conversão imobiliária urbana para servir um público oscilante como o próprio clima atlântico, forte expansão do sector terciário deixando a indústria e a agricultura alimentares ainda mais vazias e dependentes do exterior, são alguns dos problemas criados pela Moda Açores — e é por isso razoável que a literatura de viagens que agora lhes seja dedicada repercuta os entorses causados pelo epifenómeno do turismo «de natureza» mas em versão brutal. «Açores em Agosto. […] Abriram as portas a um rebanho que, oxalá, não transforme este arquipélago em outras Canárias e Baleares», lê-se à p. 102.
«Andarilho das ilhas» (p. 24), Joaquim Palma viajou de Santa Maria ao Corvo, dando a cada ilha um designativo novo que parece querer competir com os estabelecidos. O próprio Corvo seria «a ilha-sapato», «um sapato gigante que um ciclone deixou para trás» (p. 292). São Miguel seria «a ilha dos vapores telúricos» e não a Ilha Verde da tradição, São Jorge «a ilha esticada», Faial «a ilha acrescentada», Graciosa «a ilha com coração de enxofre» e as Flores «a ilha alpina» (p. 253), inspirando-se sempre em factores geológicos e forças «telúricas» (pp. 52, 144, 227, 244, 264), e por uma vez (p. 73) históricos: «Terceira (a ilha das naus da Índia).» Mas em quase todos os lugares — há raras e nobres excepções — percebemos que o autor, cuja proximidade à civilização japonesa devemos ter sempre em mente, está zangado com a humanidade, «espécie manipuladora» (p. 280), «que não consegue sair do Paleolítico» (p. 79). Questiona-se sobre «quantos sóis terão ainda de se levantar no horizonte até não escravizarmos ou sermos escravizados?» (p. 138), fala-nos da «gritante ignorância humana» (p. 234), do «dia-a-dia doméstico feito um inferno ou o ódio ao vizinho do lado» (p. 147) e «deste mundo tão maltratado pelos homens» (p. 157). Postula que «a espécie humana muito aprenderia se olhasse bem para esta relação entre o dar e o receber» (p. 196) patente na colaboração do mineral e do vegetal na fertilização do solo picoense, e vai ao ponto de sugerir que «se calhar existem neste planeta alguns lugares tão especiais que o mais certo é não terem sido feitos para receber a pegada humana» (p. 211). «O futuro, que nos cabia a nós, humanidade, alimentar com ciência e sabedoria, talvez não chegue a ser presente — estamos a abortá-lo em consequência da nossa descuidada maneira de viver» (p. 228). «Neste cego, vertiginoso e aniquilador terceiro milénio, o cronista leva a bagagem cheia de receios» (p. 123). «Há seres humanos em quem não se pode confiar» (p. 217).
Não surpreende por isso que o «cronista» (sic), que desespera com a «ignorância e a insensibilidade» de quem deixa para trás o lixo do seu consumo «no ponto mais alto de Portugal», e invoca «aquela inominável e abrangente estupidez de que falava Einstein» (p. 229), chegue à Fajã Grande da Ilha das Flores e se dê conta do «coração sem fim que ali late» e da «beleza que tem tudo no lugar certo», a ponto de lhe parecer — e concordo com ele neste ponto… — «um sítio sagrado onde viriam despedir-se deste mundo poetas, músicos, pintores, filósofos, mulheres e homens agradecidos» (p. 264). Ou que, mais além, na Ponta Delgada do norte desta ilha, as Sopas do Espírito Santo — para as quais fora convidado — lhe tenham parecido um evento «deveras impressionante», onde «tudo tem um fundo antigo» e é «toda uma lição real de fraternidade, lá longe, no meio do grande oceano», na «ilha açoriana situada mais longe do continente europeu» (p. 278).
É no extremo ocidental que Joaquim Palma parece ter encontrado os Açores que pessoalmente mais lhe interessam. «Há ali [no Corvo] algo estranho, da dimensão do intemporal, de uma genuinidade a que não estamos habituados» (p. 317), algo próprio da mais verdadeira Viagem. Chegou até ali sem dar mostras de quaisquer leituras de açorianos, sequer de Dias de Melo no seu Pico baleeiro, a ilha que provavelmente melhor conhece (v. p. 211). Nada nos aponta do que admite poder ser «visto e vivido como o arquipélago da palavra poética» (Notas Prévias, p. 11). Não sendo ornitólogo ou birdwatcher, reparou no priolo micaelense, no painho-da-Madeira e no cagarro, ouviu a passarada terceirense concentrada no Monte Brasil «em dias de sol» (p. 79), viu gaivotas-de-patas-amarelas e garajaus-de-dorso-preto nos ilhéus da Graciosa, sabe que a Lagoa do Caiado, no Pico, «é santuário de muitas espécies voadoras que aqui encontram o seu paraíso terreal» (p. 212), lembra os melros «em abundância nas hortas, jardins e bosques» da cidade da Horta (p. 230). As boas páginas dedicadas ao Jardim Botânico do Faial, e ao seu «banco de sementes da flora açoriana» (p. 244), não têm paralelo em todo o livro, embora se justificasse.
Intuiu a «inquietude expectante» dos jorginos (p. 168), mas nem sempre esteve atento: no museu desta ilha admirou a grande figura de proa dum navio naufragado, que diz ser «única» e «preciosa» sobrevivente dum «mundo antigo feito de viagens marinhas, de histórias insólitas» (p. 127), mas escapou-lhe — melhor dito, desencontrou-se com — a não menos impactante e bela cabeça de índio brasileiro, ou peruano, também figura de proa, no Museu de Angra, e como estátua-fonte num tanque no Jardim Duque da Terceira, ali bem perto. Tem razão quando diz — com manifesto, divertido exagero! — que se nos povoados picarotos se tivesse «seguido o hábito ancestral de se construir apenas com pedra negra», o basalto, «tal arquitectura muito provavelmente classificaria a Ilha do Pico como o local mais belo do planeta» (p. 199).
Ainda que escrito sob a evocação de Frutuoso, é de Raul Brandão que, de facto, Joaquim Palma mais se aproxima, em especial numa página deveras inesquecível, como o momento que a inspirou. Diz assim: «De repente, a nuvem caiu sobre o caminho que percorríamos no interior da ilha [das Flores], e ficámos rodeados por hortênsias floridas, cedros retorcidos e urzes gigantes cujas formas se esbateram até se tornarem manchas fantasmagóricas dentro de uma noite branca feita de serenidade e silêncio. Os pássaros calaram-se, o vento foi soprar para outros lugares, a luz deixou de fazer sombras, o som dos passos na terra saibrosa saía almofadado e o corpo movia-se desligado do pensamento. Havia ali um encontro, mas com o quê?» É o que cada viajante terá de tentar descobrir por si mesmo.
Vasco Rosa

Originalmente publicado no «Observador», a 27 de Fevereiro de 2022

Edit Template
Notícias Recentes
Doentes do HDES transferidos hoje da CUF para o Hospital Modular
Taxa de mortalidade por tumores malignos nos Açores é a terceira mais alta do país
Hospital Modular foi avaliado inicialmente em 12 milhões de euros e poderá ser alocado a outra ilha
BE quer dados sobre HDES
PS pede justificações ao governo sobre HDES
Notícia Anterior
Proxima Notícia

Copyright 2023 Diário dos Açores