“O nosso dever para com nós próprios não deve depender do nosso estado de espírito. Por muito que o canto da sereia da nossa cama nos encante com a promessa de calor circundante, não devemos definhar no seu agradável conforto.”
Crónicas de um pai de dois que, aos 35 anos, achou que era uma boa ideia começar a praticar jiu-jitsu — entre fraldas, noites mal dormidas e dores inexplicáveis no pescoço. Guiado pelos ensinamentos de Marco Aurélio e pelo medo de desistir, porque já contou a toda a gente que ia mesmo levar isto a sério.
Há uns anos, provavelmente li um livro de autoajuda que me fez acreditar que deveria sair da minha zona de conforto. A minha cabecinha de 35 anos achou boa ideia começar a praticar Jiu Jitsu Brasileiro.
Caro leitor, desde já informo que Jiu Jitsu Brasileiro não é uma raça de um cão exótico de pelo curto, com tendência a babar-se, embora, muitas vezes, esta arte marcial envolva contacto patrocinador de suor entre os praticantes.
O BJJ (Brazilian Jiu Jitsu), como o pessoal entendido refere em mensagens de texto, é uma arte marcial que pode ser descrita como o ato de dobrar roupa com a pessoa ainda lá dentro. No Jiu Jitsu não há essas coisas de socos e pontapés. É um combate cerebral, corpo a corpo, onde estrangulamentos e finalizações são aplicados “à lagardete”, e onde nunca se perde – ou se ganha ou se aprende.
Xadrez humano. Nível: extremamente difícil.
Quando começamos a praticar a chamada arte suave, atamos à volta da cintura a famosa faixa branca. Este comprido pedaço de pano serve, acima de tudo, para informar o restante ecossistema que não sabes absolutamente nada. O meu corpo, na altura, tinha uns bem adquiridos 100 kg, que, na minha ingénua insensatez, me dotaram da confiança necessária para pisar o tatame com a ideia de que as leis da física iriam estar do meu lado. Como estava enganado…
Imagine que está a brincar com uma criança de dois anos, e que a brincadeira consiste em mantê-la no chão sem que ela se consiga levantar – dando um toque ali empurrando docilmente acolá, entre risos e condescendência bem-intencionada. É exatamente isto que acontece a um faixa branca nos primeiros meses (no meu caso ano e tal). A única coisa que muda é que a criança de dois anos és tu! Vá lá fui eu. E os adultos – muitos pesando menos 30 Kg – controlam-te com uma calma enervante, explicando ainda, o método de manipulação corporal, durante o ato de dobragem ortopédica, com a facilidade que, caro leitor, você dobra um guardanapo de papel.
Saí dos primeiros treinos com a perfeita noção da minha inutilidade marcial, bastantes nódoas negras, ego destruído e a estranha certeza de que iria continuar durante muitos anos.
Decerto está a pensar que devo estar maluco. Mas é precisamente aqui que entram as Meditações do imperador romano Marco Aurélio, e a influência que têm em mim. Esta obra é uma coletânea de anotações pessoais do famoso imperador-filósofo, escritas sem o intuito de publicação – uma verdadeira luta contra si próprio. Sempre que revisito as inúmeras entradas não consigo deixar de ficar fascinado com a clareza de pensamento, profundamente humana e extremamente relevante, das suas reflexões. É incrível ver como o homem que governava o maior império do mundo, há cerca de dois mil anos, lidava com os seus pensamentos intrusivos, frustrações, dúvidas existenciais e lutas internas. Ainda mais incrível é o poder das suas realizações, guiadas pelos princípios estoicos de temperança, justiça e coragem. Para evitar continuar a usar a palavra incrível vamos lá prosseguir.
Portanto, relevância para o Jiu Jitsu? Vamos lá abrir o livro:
“De manhã, quando estás com dificuldade em sair da cama, diz a ti próprio: Tenho de ir trabalhar – como um ser humano. Que tenho eu para me queixar, se vou fazer o que nasci para fazer? – Ou será que fui criado para ficar confortável debaixo dos cobertores aconchegado?” (Meditações 5.1)
No meu exemplar do livro nesta passagem sublinhada a carregado, tenho escrito a caneta – Este “gajo” era um imperador romano!
O nosso dever para com nós próprios não deve depender do nosso estado de espírito. Por muito que o canto da sereia da nossa cama nos encante com a promessa de calor circundante, não devemos definhar no seu agradável conforto. Apesar de adorar praticar Jiu Jitsu, não me ocorre um único treino em que não ponderei se não seria preferível abrir uma fresca, sentar-me no sofá e adiar a sessão de correção do ego por mais um dia. Este pensamento intrusivo não é uma mera casualidade, a verdade é que quando levas um amasso de várias pessoas seguidas, quando se torna incontestável a tua fraqueza, o tico e
o teco entram imediatamente em ação de forma a maquinar criativamente desculpas para faltar ao próximo treino. Já cedi diversas vezes, infelizmente. Mas relembro sempre a meditação de Marco Aurélio que me recentra nos objetivos, dentro e fora do tatame:
“Nada acontece ao homem que não esteja na sua natureza suportar. O mesmo acontece a outros, e suportam ilesos” (Meditações 5.18)
Se te aconteceu, é porque consegues aguentar.
Podes até suportar de uma forma deselegante, e sair envergonhado com a poeira do chão colada à cara. Mas consegues – porque o humano é resiliente, disciplinável e racional. O único obstáculo é o ego que deve sempre ficar à porta.
Confia no processo, ensina o estoicismo. A curva de aprendizagem pode até ter a suave inclinação da reta dos fenais, mas a subida do pisão não fica assim tão longe.
Já agora, caro leitor, toque no tambor que vou desfilar. Já deixei de ser faixa branca. Passei a faixa azul. A diferença? Antes, ao ser amassado, não fazia a mínima ideia do que estava a acontecer. Agora, pelo menos, sei os nomes das técnicas que usam para me dobrar. Acredite em mim, é uma grande evolução. Se eu consegui – entre fraldas biberões, trabalho e confusões – qualquer um que consiga sair da cama consegue.
Agora a parte difícil, o confessionário. Já consigo imaginar alguns dos meus
companheiros da academia Checkmat BJJ Açores e o meu mestre “Prakana” a lerem isto e a pensarem – “Está agora este a fazer dissertações sobre o Jiu Jitsu… e anda a faltar aos treinos!”
Passo a explicar.
Estou a tentar conciliar a parentalidade de duas crianças com trabalho e estudos. Das vezes em que consigo ir treinar, vou em 50% delas.
A outra metade? A preguiça vence.
Marco Aurélio ajuda-me!
Philip Pontes