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Não à terraplanagem das artes e das humanidades

O articulista António Carlos Cortez publicou no Diário de Notícias (7 de julho) um artigo intitulado “A Filosofia e as Humanidades: o ataque ao pensamento na educação portuguesa”, onde se lia:
“… o que se está a fazer na educação em Portugal é, por via de uma verdadeira política de terraplanagem das artes e das humanidades a preparar a sociedade futura portuguesa para um modo acrítico de ser e de estar neste país. O que vemos é mesmo uma política de terraplanagem em relação à língua portuguesa.
Os exames digitais anunciam o óbvio: a dominação do Poder sobre as gerações desmemoriadas nascidas já no século XXI. Depois de 12 anos sem terem de ler nada de nada, nem de saber escrever seja o que for, é da mais leviana falsidade dizer-se que, pelo facto de serem exames digitais, os alunos estão a ser preparados para um mundo cada vez mais competitivo.
O que acontece é justamente o contrário: as nossas crianças e adolescentes estão embrutecidas a um ponto tal que mais ecrãs só significa mais estupidez, mais banalidade e divórcio total com a cultura, o pensamento, a liberdade.”
Embora se lhe possa apontar algum exagero em determinados pontos da sua argumentação, no geral, não há como discordar.
Este artigo passou-me no feed do Facebook há umas semanas. Recentemente recordaram-mo. Procurei-o, reli-o e percebi que nos Açores há que multiplicá-lo por dois, tal tem sido a urgência e o desnorte na introdução da tecnologia no âmbito da educação. Uma pressa que “não lembra o diabo”.
Não obstante as provas de Português sejam agora um tesouro escondido de todos (vá lá entender-se porquê), consegui analisar uma realizada digitalmente que, por hipótese, era composta por trinta questões, sendo que dessas havia apenas duas (!) de produção escrita: uma de resposta muito restrita e outra de construção! Os demais exercícios quedavam-se por ligar a coluna A à coluna B, ordenação de sequências, completamento espaços, frases para classificação de V e F, escolhas múltiplas, um autêntico disparate. Estas provas já não exigem redação, nem leituras prévias, nem pensamento abstrato ou crítico. Estas provas limitam-se a pedir que os alunos retirem do texto uma ou outra palavra e as reescrevam no espaço correto numa qualquer frase lacunar!
Há um exemplo extraordinário que ilustra muito bem a qualidade destas provas/exames, e refere-se a uma aluna que, fruto de diversas circunstâncias, nunca conseguiu nível positivo nos seus elementos de avaliação, ao longo de todo o Ciclo. Ora, na referida prova, esta menina obteve uma classificação no intervalo do Bom, e quando questionada sobre como conseguira, respondeu calmante:
“- Ah, senhor! Cá sei! Fiz tudo foi à sorte!”
Sim, nestes termos e com toda a veracidade inscrita num sorriso envergonhado.
A propósito da “terraplanagem das humanidades”, no fundo a terraplanagem do pensamento, foi pena o articulista não se referir mais profundamente aos programas, essa autêntica velharia, documentação bafienta a carecer de uma revisão profunda e urgente. No 2.º Ciclo, por exemplo, os alunos passam grande parte dos semestres (no plural, porque acontece no 5.º ano e, como se já não fosse coisa pouca, repetem no 6.º) em torno de textos não literários (notícias, panfletos, roteiros, e o diabo!). A saber das suas dificuldades, do seu ritmo de aprendizagem cada vez mais lento, mais a inevitabilidade da lecionação da gramática, assim como todos os condicionalismos paralelos, que tempo lhes resta para que leiam, problematizem, pensem, escrevam e resolvam? Estamos a criar uma geração que não sabe pensar, nem escrever nem ler. Tudo o que vá além do concreto é sinónimo de insucesso! Quando se pede mais tempo letivo para tentar minorar a situação, cai o Carmo e a Trindade!
Andávamos nisto há anos, mas, surpreendentemente, conseguimos piorar as coisas, permitindo todo este assalto da tecnologia às salas de aula. Não obstante – ingénuos –, continuamos à espera de que o milagre aconteça e que o pensamento crítico nasça “de geração espontânea” na cabecinha daqueles a quem ninguém exige que leiam ou escrevam; na cabecinha daqueles a quem não se pode pedir que decorem ou que tentem perceber o porquê das coisas. Pedimos-lhes apenas que preencham umas lacunas com umas palavras que até estão na tabela ao lado, mas depois ficamos à espera de que sejam indivíduos pensantes e capazes de enriquecer a sociedade onde se inserem.
Todos conhecemos o caminho para o sucesso, e todos sabemos que não é este que estamos a trilhar. Dar um passo atrás pode, muitas vezes, significar dar um grande salto para a frente, mas há que ter coragem. “[…] as nossas crianças e adolescentes estão embrutecidas a um ponto tal que mais ecrãs só significa mais estupidez, mais banalidade e divórcio total com a cultura, o pensamento, a liberdade.”
Ainda não é tarde!

Telmo R. Nunes

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