“Se o fim da Azores Airlines acontecer, não deve ser encarado como uma catástrofe”
Na véspera de uma reunião que poderá ser decisiva para o futuro da Azores Airlines, entre a administração do Grupo SATA, o consórcio Newtour/MS Aviation – que já propôs adquirir 76% da companhia aérea – e o júri do concurso para a privatização da empresa, o Diário dos Açores publica uma entrevista exclusiva com Pedro Castro, conceituado especialista em aviação comercial. Nesta sua análise ao presente, mas sobretudo focada no que poderá ser o futuro da transportadora aérea, realça, desde logo, a necessidade de uma mudança na política pública que assegure “que os Açores permanecem ligados, interna e externamente, através de uma verdadeira diversidade de modos de transporte, de operadores e de soluções”.
Alertou recentemente que os sucessivos adiamentos do processo de privatização só desvalorizam a Azores Airlines. Em que indicadores concretos essa desvalorização já é visível e que medidas imediatas a podem travar?
De facto, os sucessivos adiamentos do processo de privatização têm um impacto directo e mensurável na valorização da Azores Airlines. O primeiro sinal visível está nos atrasos recorrentes no pagamento de salários e subsídios de férias, o que revela um problema estrutural de tesouraria. Os salários é sempre o último reduto até por uma questão de paz social, pelo que quando já se verificam atrasos nesta área é porque a situação financeira atingiu um ponto crítico e é legítimo questionar se outros compromissos não estarão igualmente comprometidos, nomeadamente pagamentos a fornecedores. Se isso estiver a acontecer, o risco é que os credores comecem a duvidar da solvência da companhia e passem a exigir pagamentos imediatos. Foi precisamente esse o ciclo que precipitou o colapso de várias companhias no passado, incluindo a Swissair que eu vivi na pele. Outros sinais são obviamente os resultados financeiros desastrosos de 2024 para os quais alertei várias vezes aqui mesmo no Diário dos Açores, os cancelamentos de voos e as tomadas de posição de alguns sindicatos.
A única medida imediata capaz de travar este processo de desvalorização seria a entrada urgente de um investidor que esteja disposto a recapitalizar fortemente a empresa. Felizmente para todos nós, contribuintes, e em conformidade com as regras europeias da concorrência, o Estado não pode desempenhar esse papel. Ora, encontrar um investidor privado disposto a entrar num negócio de altíssimo risco, intensivo em capital e com margens historicamente reduzidas (quando são positivas) é uma tarefa quase hercúlea.
Boa sorte para encontrar esse investidor e ainda mais sorte a quem decidir investir, porque dificilmente verá retorno sobre esse investimento.
O Governo Regional admitiu, em última instância, encerrar a Azores Airlines já em 2026 se não houver proposta vinculativa. Acha que este será o caminho inevitável?
Se esse cenário vier a concretizar-se, não deve ser encarado como uma catástrofe, mas sim como uma possibilidade natural na vida das empresas, sobretudo daquelas que foram, ao longo dos anos, mal geridas e excessivamente dependentes do erário público. O encerramento de uma companhia não é, por si só, um drama e há vários exemplos de que o que vem a seguir geralmente é muito melhor.
A verificar-se, é importante que a política pública seja diferente: assegurar que os Açores permanecem ligados, interna e externamente, através de uma verdadeira diversidade de modos de transporte, de operadores e de soluções. O dinheiro público deveria ser canalizado para facilitar a criação de alternativas, não para perpetuar dependências. Infelizmente, nenhum Governo Regional compreendeu verdadeiramente isto. Em vez de apostar na integração dos transportes e na resiliência das infra-estruturas, como o porto das Lajes, nas Flores, que continua por reconstruir, ou expandir o aeroporto do Pico que está sob a sua alçada e não depende de nenhuma decisão de Lisboa – optou-se por um modelo cada vez mais estatizado, que desincentiva a concorrência e a eficiência.
Chegámos ao ponto de ter concursos públicos para os voos interilhas onde só concorre a própria empresa do Governo, e até as ligações liberalizadas para o continente continuam, na prática, sob monopólio das companhias públicas. Não dá para um privado concorrer com empresas assim e por mais passageiros que existam, os privados não entram em mercados opacos. Por isso, se o fim da Azores Airlines acontecer, o que deve preocupar-nos não é o desaparecimento da empresa, mas sim a ausência – pelo menos temporária – de um verdadeiro modelo alternativo de transporte e conectividade para o arquipélago.
O Executivo quantificou com um custo potencial de 300 milhões de euros uma eventual insolvência. Este impacto terá um enorme peso negativo nas fragilizadas finanças públicas dos Açores. Para além dos custos financeiros e políticos de um processo de privatização falhado, acha que o encerramento é um caminho realista para conter os galopantes prejuízos da SATA?
É difícil perceber como são feitas essas contas assim atiradas para o ar. Convém lembrar que os trabalhadores e o próprio Grupo SATA cumprem mensalmente as suas obrigações contributivas para a Segurança Social – precisamente o mecanismo que, entre outras funções, serve para responder a situações como esta. É evidente que haveria um impacto imediato no curto prazo, como acontece sempre que um sector enfrenta uma disrupção profunda. Mas não seria, de todo, um choque incontrolável: os governos estão habituados a lidar com crises económicas e sociais de maior dimensão… basta recordar o que aconteceu durante a pandemia, que atingiu transversalmente todos os sectores ao mesmo tempo e não apenas um único.
O verdadeiro problema é outro: ao longo de décadas, todos os governos e políticos das mais diferentes cores construíram uma narrativa emocional em torno da SATA, como se fosse mais do que uma empresa, quase um símbolo identitário. E isso torna qualquer decisão racional muito mais difícil. No fim, quem tiver mesmo de apagar a luz vai, inevitavelmente, pagar o preço político dessa decisão. Mas a história tende a colocar as coisas no seu devido lugar: o tempo costuma apagar as emoções e dar razão à racionalidade. E a racionalidade, neste caso, poderá muito bem ditar que encerrar uma estrutura insustentável é o único caminho possível para libertar os Açores de um fardo financeiro que se tornou incomportável e que prejudica o arquipélago.
Em 2022, Bruxelas aprovou 453,25 milhões de euros para reestruturação, exigindo medidas como a reorganização e a alienação de 51% do capital. Que riscos regulatórios vê se o processo não cumprir o “espírito” destas condições?
Tentar privatizar e conseguir privatizar são duas coisas diferentes, portanto não ter privatizado a tempo ou não ter encontrado comprador não remete automaticamente para uma sanção da União Europeia.
Tendo em conta que a empresa precisa de capital e que esse capital não poderá vir do Estado, sem essa privatização a Azores Airlines terá de fechar. Se o Estado tentar, entretanto, injectar dinheiro para evitar esse desfecho, aí sim terá problemas regulatórios muito sérios.
O consórcio Newtour/MS Aviation classificou de “inaceitável” a posição do sindicato dos pilotos e garante ter apresentado uma proposta; o SPAC diz que não recebeu proposta “formal” e rejeita cortes salariais de 10%. O que está verdadeiramente em causa nesta divergência e como é que ela condiciona o fecho do negócio?
É importante afastar o ”diz-que-disse” e compreender o essencial: é perfeitamente normal que, nesta fase, tanto o investidor como os sindicatos expressem as suas posições, expectativas e exigências. Este é precisamente o momento em que essas negociações devem acontecer.
O debate sobre cortes salariais não pode ser visto apenas de forma nominal, olhando apenas para o salário fixo. Nas companhias aéreas, a remuneração e os custos associados à tripulação são muito mais complexos. Um exemplo concreto ajuda a ilustrar: na rota Ponta Delgada–Frankfurt–Ponta Delgada, actualmente operada em horário nocturno, uma tripulação da TAP realizaria este mesmo voo de ida e volta no mesmo dia. Já na Azores Airlines, essa mesma tripulação permanece em Frankfurt três ou quatro noites, caso o destino tenha dois voos semanais – o que implica ajudas de custo, estadias em hotel e contabilização desse tempo como trabalho efectivo, mesmo sem estarem a voar. Este tipo de organização operacional numa empresa desta dimensão tem um peso enorme na rentabilidade da rota, na produtividade da tripulação e na utilização da aeronave. E é natural que qualquer investidor analise cuidadosamente esses factores antes de comprometer capital. Se, perante este diagnóstico, a resposta sindical for “não cedemos”, também é natural que o investidor conclua “então não investimos”.
O consórcio sustenta que não basta “mudar de accionista para deixar tudo na mesma” e aponta derrapagens: custos com pessoal +61% (de 41M€ para 67M€), ACMI de 4,4M€ para 28M€, irregularidades operacionais de 1,6M€ para 10,4M€ e prejuízos acumulados de 486M€. Quais devem ser as três primeiras correcções operacionais pós-privatização?
Qualquer partido no governo regional gostaria de “passar” a batata quente e deixar tudo na mesma para não perder votos, nem reputação.
Esse objectivo não é compatível com um investidor privado que faz as contas e que vai tentar obter o retorno do seu investimento. Aqui reside a maior e pior contradição entre ambas as partes. As irregularidades operacionais e o recurso ao aluguer de aeronaves externas (os tais ACMI) é algo que o consórcio saberá (ou deverá saber) lidar sozinho. Para os custos com pessoal – que é também o maior e mais importante – precisa, de facto, medir o pulso aos sindicatos e entender qual a sua abertura para negociar certos aspectos em certas categorias profissionais. Sem isso, nada feito, daí ser tão fundamental esta discussão e este compromisso prévios.
Rever a rede de rotas e adequá-la à frota é outra linha defendida pelo consórcio. Que critérios técnico-económicos devem guiar essa reconfiguração?
Para responder a essa pergunta, conta-se que o Consórcio se quis sentar com os Sindicatos e apresentar o projecto e o que precisariam para o concretizar. Voltando ao exemplo da rota nocturna para Frankfurt: se o acordo implica a tripulação dormir lá 3 ou 4 noites, o programa tem de ser totalmente reconfigurado por causa desse “detalhe” e aquilo que é possível fazer – em termos de uso produtivo global dos activos da empresa, seja dos aviões, seja do pessoal – pode deixar de fazer qualquer sentido económico.
Se prevalecer a via de negociação particular ou se o processo voltar a falhar, que plano de contingência defende para garantir continuidade do serviço — em especial nas rotas estratégicas — sem agravar o risco de encerramento em 2026?
Não bem entendo o que é isso de “rotas estratégicas” – os Açores estão conectados com o mundo, quanto mais não seja “via” Lisboa. Os açorianos fazem isso todos os dias, até porque os destinos da Azores Airlines são muito poucos e a coordenação dos horários da Azores Airlines com os voos da SATA para as outras ilhas é fraca em muitos casos. Aliás, o actual presidente do governo regional foi à Bolsa de Turismo de Lisboa, em Março de 2024, dizer que Lisboa precisava de um novo aeroporto e que o impasse na sua localização prejudica muito os Açores e a economia açoriana. Não sei se foi lá fazer algum favor a alguém ao dizer isto, mas Miguel Albuquerque da Madeira não faz esse tipo de fretes a ninguém… e repare que a Madeira não tem uma companhia aérea própria e a posição do governo regional da Madeira segue uma linha muito clara: quanto mais voos directos para a Madeira, melhor, quanto menos dependência de uma única companhia, melhor ainda.
Voltando aos Açores, para mim, o risco maior não é o do encerramento em si, é da total falta de preparação e de alternativas para lidar com esse cenário altamente provável.
A reunião entre o júri, a administração da SATA e o consórcio Newtour/MS Aviation foi marcada para amanhã, 13 de Outubro, em Lisboa. O que espera deste encontro “decisivo” e qual seria, na sua perspectiva, um desfecho aceitável para a Região?
O desfecho que eu espero é que nunca mais a região fique refém de uma empresa para a sua mobilidade e para a eleição dos seus políticos. É a pior de todas as opções.
Rui Leite Melo