O valor dos dados não está em os venerarmos, mas em os usarmos com sabedoria:
para compreender, para capacitar e para agir.
No livro Homo Deus – Uma Breve História do Amanhã, Yuval Noah Harari descreve uma visão do mundo a que chama Dataísmo: um sistema religioso que já não venera nem deuses nem a própria humanidade, mas sim os dados. Acredito que esta ideia capta algo profundamente relevante para o nosso tempo. Os dados ajudam-nos a compreender o mundo que existe à nossa volta porque nos permitem ver para além das nossas experiências e preconceitos pessoais. Transformam a intuição em evidência e a opinião em conhecimento. Através dos dados, ganhamos a capacidade de observar padrões que revelam como as sociedades evoluem, como funcionam os sistemas de saúde ou como mudam os ecossistemas, ou seja, coisas que nenhuma perspetiva individual poderia alguma vez observar por completo.
Mas os dados, por si só, não são sabedoria. Para nos servirem verdadeiramente, precisam de ser estratificados, localizados e contextualizados. Se queremos usar os dados para resolver problemas reais, temos de garantir que eles refletem as realidades das pessoas a quem se destinam. As estatísticas nacionais, muitas vezes, escondem os detalhes locais que mais importam, e é nesses detalhes que a vida acontece.
Isto é especialmente verdade para as Regiões Ultraperiféricas (RUP) da Europa, como os Açores. Apesar de integrarem a União Europeia, estes territórios continuam frequentemente invisíveis nos principais conjuntos de dados. Falta informação essencial ao nível regional (NUTS2), deixando investigadores, decisores e cidadãos com uma visão apenas parcial da sua própria realidade económica, social e ambiental. Quando os dados se ficam pela escala nacional, os desafios locais, que vão desde as lacunas na saúde até ao declínio demográfico, tornam-se mais difíceis de identificar e ainda mais difíceis de resolver.
Esta ausência de dados regionais detalhados não é apenas uma questão burocrática: tem consequências reais. Nos Açores, por exemplo, embora saibamos que a esperança de vida continua cerca de três anos abaixo da do território continental, ainda não dispomos de dados consistentes e publicamente acessíveis sobre a incidência de cancro ou de doenças cardiovasculares. O que existe são números de mortalidade, que mostram que tanto o cancro como as doenças do aparelho circulatório têm um peso maior nas ilhas do que no continente. Mas sem dados claros e atualizados sobre a incidência, sem sabermos quantos novos casos surgem por ano, em que grupos etários e em que condições (como padrões de estilo de vida, alimentação ou consumo de álcool), perdemos a capacidade de agir a tempo. Dados regionais fiáveis poderiam ajudar a identificar grupos de risco, orientar programas de rastreio e melhorar estratégias de prevenção adaptadas às realidades locais. A sua ausência deixa as autoridades de saúde numa postura reativa, em vez de preventiva. Esta lacuna ilustra na perfeição porque razão a estratificação dos dados não é um ideal abstrato, mas uma necessidade prática: se queremos prevenir doenças, e não apenas registá-las, temos primeiro de as ver com clareza.
Se como sugere Harari, a fé emergente do nosso tempo é o Dataísmo, então chegou o momento de tornar essa fé mais justa. Os dados devem iluminar todos os cantos, não apenas os centros de poder e de população. Para regiões como os Açores, melhores dados não são um luxo, são a base de políticas mais inteligentes, de um desenvolvimento sustentável e de um verdadeiro sentimento de inclusão num mundo cada vez mais guiado por algoritmos e por evidência.
No fim, o valor dos dados não está em os venerarmos, mas em os usarmos com sabedoria: para compreender, para capacitar e para agir. Só assim o Dataísmo se torna algo mais do que uma crença, transformando-se numa ferramenta de pertença.
José Basíllio
Analista de Dados Sénior