Home is the ground beneth one’s feet,
and movement is the natural way of things.
Wade Davis
Our tears come from our hearts.
El Shaheed
It is such a secret place, the land of tears.
Antoine de Saint-Exupery
Escrevi este texto há uns anos atrás para apresentação da Antologia de Poesia Açoriana Os Nove Rumores do Mar, da qual fui o organizador. Tratava-se da segunda edição, reeditada em Lisboa pelo Instituto Camões na Colecção Insularidades.
Esta obra foi ainda lançada em Toronto no dia 13 de Outubro de 2000 com o apoio do Instituto Camões e dos Departamentos de Língua Portuguesa das Universidades de Toronto e York.
Não trago aqui este texto como uma reverberação sentimentalista do passado. Afigurou-se-me pertinente fazê-lo por duas razões: primeiro pelo seu tom intimista cuja simbiose é um retrato de alma de um tempo físico e emocional; segundo, como angolano de nascença e vivências, me dá a oportunidade de explicar a minha relação com os Açores nas suas vertentes culturais, mormente o que norteou a ideia deste projecto antológico.
Esclareço ainda que introduzi reformulações de fundo relativamente ao texto original. O Tempo não é apenas um coador de emoções mas também um implacável juiz de valores.
***
Hoje é o último dia de Setembro. Não consigo ouvir os sons do quintal, quero dizer, o rumor dos pinheiros. E os pássaros, essas ariscas pinceladas de Renoir que poisam na brisa da tarde? Estão apenas um instante, tão breve que se tornam uma ausência em movimento. A beleza é a mais efémera alegria do mundo. Por isso nos comovemos, em certos momentos de prodígio, quando descobrimos numa gota de orvalho o vulto de Beethoven.
Entre a minha casa e a rua há uma fronteira invisível. Lá fora sou um cidadão incógnito. No seu interior, sou eu e a minha cultura.
A que terra pertenço? Até que ponto é importante definir-me? Não sei. Viajo com o meu destino e com a minha circunstância.
Trago no espírito a transcendência de África e a irradiação telúrica açoriana. Há um orgulho superlativo nestas afinidades e vivências íntimas, indissociáveis do meu subconsciente e da minha empatia. A lei dos sentimentos, ambígua, comanda e surpreende o nosso raciocínio. É uma luz na escuridão dos genes.
Habito mundos repartidos e sou o resultado de três culturas diferentes: a angolana, a açoriana e a canadiana. Aquele que designo como o meu tempo açoriano marcou a minha escrita e um modo peculiar de abraçar, sentir e ver o mundo.
Antes que discorra sobre a minha experiência nos Açores gostava de recuar algumas páginas no calendário, ao período em que vivi no Zimbabué.
Foi em Harare (ex-Salisbúria) num pequeno hotel de portugueses onde tinha chegado no amargo Setembro de 1975, que comecei a escrever. Era um quarto sombrio, sem vida, cuja porta dava para um corredor onde a voz dos refugiados de Angola e Moçambique se cruzava num redemoinho de lamentações febris contra o destino. Eu tinha uma caneta e, na sua tinta, rios de palavras. A poesia, correndo sob o pulso como um regato em chamas, ajudava-me a atravessar o deserto de longos dias e intermináveis noites.
O meu primeiro poema, escrito em África e num momento muito atribulado da minha vida, foi publicado no jornal Diário dos Açores, em Ponta Delgada. Essa ponte simbólica, África-Açores, mantém-se até hoje no meu universo criativo nos dois géneros que cultivo: poesia e ficção.
Quando cheguei aos Açores em 1976, Março cantava sobre as águas do mar. Contido, estranho e inadaptado fui-me apagando nos ecos do meu passado africano. Foram dias, semanas e meses de luta contra incontornáveis emoções. Eu era um jovem cego, entorpecido pelo imponderável. Não percebia ainda que a luta mais inútil do ser humano é contra si próprio. Fiz das minhas ruínas o meu leito e da madrugada um sismo. Afundei-me meses seguidos dentro de jornais, virando páginas, buscando num parágrafo um resquício de esperança. Era um auto-degredo que roçava o absurdo e a intemperança.
A ilha, entretanto, corria sob os meus pés aos gritos e acariciava os meus passos. Mas eu não ouvia o chamamento. Estava demasiadamente perdido na chuva da minha própria tempestade.
Os traumas da descolonização, profundos e difíceis de contornar, erguiam-se como muros obstinados.
Mas um dia a ilha surgiu-me de repente como um milagre, transfigurada: parecia-me agora um poema rodeado de água por todos os lados. Não estava perante os domínios da esperança mas sob o efeito milagroso de quem descobre nos mais iluminados labirintos da melancolia uma nova e promissora realidade.
Mas um dia, sentado numa pedra da piscina de S. Pedro, notei como o mar ressoava numa viagem mágica com barcos ao fundo. Ao entrar em casa da minha avó, em Ponta Delgada, pareceu-me sentir a energia marinha da ilha grudada às suas paredes com o seu peculiar odor de espumas. A voz e o eco dos meus antepassados maternos povoavam as mobílias e os objectos mais íntimos. Nos álbuns, em cujas páginas sucediam-se fotografias gastas pela erosão do Tempo, descobria fisionomias que não eram apenas rostos mas a marca genética de uma estirpe, agora de cor sépia e sob uma impregnação de humidade lendária. Todos os meus mortos traziam consigo a história de um nome e a fulminante repercussão do sangue. Era neles que eu revia a minha geografia interior, aquela que apenas os sentidos explicam e a alma traduz.
Nas estantes, que a minha avó Irene religiosamente guardava, solenes, calados como anciãos graves, respiravam de sobriedade os livros do meu avô Rebelo de Bettencourt. Pareciam-me estátuas magnas de cujos dedos caíam poemas e folhas antigas de um Outono transcendente.
A poesia do meu avô levou-me inevitavelmente à de outros autores açorianos, mormente à de Natália Correia (amiga de infância de minha mãe), Vitorino Nemésio, Antero de Quental, Roberto de Mesquita, e à das gerações mais recentes. Aos poucos fui-me apercebendo da elevada qualidade de um corpo literário do qual faziam parte, entre outros, J. H. Santos Barros, Urbano Bettencourt, Emanuel Félix, Álamo Oliveira, Emanuel Jorge Botelho, Marcolino Candeias, Vasco Pereira da Costa, Borges Martins, Eduíno de Jesus e o legendário Pedro da Silveira.
Nos sete anos que vivi nos Açores escrevi e publiquei livros de poesia. Colaborei com o jornalista Álvaro de Lemos da RDP-Açores com textos e entrevistas, difundidos no seu programa; coordenei, juntamente com o jornalista Laurindo Cabral o suplemento literário Seixo no jornal Correio dos Açores; de parceria com Emanuel Jorge Botelho nasceu Aresta, uma revista de artes e letras.
Em 1983 radiquei-me no Canadá.
Durante os primeiros tempos curvei-me sobre uma velha máquina de escrever. Numa litania incessante, como se tocasse um batuque de metal, escrevi a novela As Brancas Passagens do Silêncio, a história mais utópica que engendrei até hoje e não penso repetir.
Ensinou-me a experiência que podemos viver socialmente adaptados a um país estrangeiro, mas culturalmente desintegrados. Estudos de antropologia cultural iluminam-nos em pormenor no que diz respeito às particularidades comportamentais e cosmovisões do indivíduo. Sentindo através de uma língua (o português) e convivendo através de outra (o inglês), fez-me sentir como se estivesse numa situação robótica e paradoxal. A palavra escrita, aquela que emanava dos mais íntimos incêndios, era originária daquela parte de mim que só era passível de existir na euforia de um momento solitário, que era o acto da criação literária na minha língua e nos moldes expressivos de um povo ancestral do qual fazia e faço parte. A língua portuguesa ornava o meu imaginário como um diadema. E era através dela que eu sentia e interpretava os sinais culturais que me rodeavam. O inglês era a telegrafia, o veículo línguistico que me ligava ao mundo exterior, uma plasticidade verbal que se foi diluindo com a inexorável sabedoria dos anos.
ContinuaEduardo Bettencourt Pinto