Sylvia Plath podia rasgar as suas cartas. Podia escolher o que lembrar ou esquecer. Eu, porém, escrevo sabendo que nenhum gesto físico me devolve o direito à destruição; vivemos no tempo em que tudo fica, tudo é potencialmente eterno, digital, replicável. Tento imaginar o que significa existir nesta era em que a morte não apaga nada, apenas transforma os mortos em dados, navegáveis e manipuláveis por quem nunca os conheceu. Vejo com inquietação como esta imortalidade digital recai especialmente violenta sobre as mulheres: podemos ser transformadas em avatares dóceis, em imagens pornográficas, “ressuscitadas” para dizer o que nunca quisemos, a favor de quem nunca consentimos.
Interrogo-me sobre a diferença entre o real e o verdadeiro. Aprendi, dolorosamente, que um deepfake é real porque existe, circula, produz efeitos. Mas não é verdadeiro: não corresponde à nossa vontade, ao que fizemos, ao que somos. Sinto que a violência do digital está neste ponto de colapso linguístico — ficamos feridas por eventos que nunca aconteceram, condenadas a provar negativas e a sofrer danos que a justiça tradicional nem sequer concebe.
A filosofia chama a isto hiper-realidade: a simulação supera o ser, fá-lo desaparecer. Para nós, mulheres, esta lógica corrói até a autonomia mais íntima. Somos editadas, comercializadas, reduzidas a imagens que servem a estranhos e apagam o essencial de quem fomos ou somos. Pergunto-me se será possível algum direito à opacidade, como nos ensinou Glissant. Reivindico não ter de me explicar totalmente, poder manter zonas de sombra. Luto para recusar a transparência compulsiva, a exposição perpétua a algoritmos, olhares e julgamentos.
Na morte, tudo se agrava: não há consentimento possível, nem resistência. O arquivo digital elimina o direito ao esquecimento, e vejo feridas abertas em figuras como Woolf, Kahlo, Beauvoir, todas reescritas, domesticadas, tornadas produto e espetáculo.
Na morte, tudo se agrava: não há consentimento, não há resistência. O arquivo digital elimina o direito ao esquecimento, e vejo feridas abertas em figuras como Virginia Woolf, Frida Kahlo, Simone de Beauvoir, todas reescritas, domesticadas, tornadas produto e espetáculo. Elas são a prova histórica de como a memória pode ser uma forma de violência.
Pensemos em Virginia Woolf: quantas vezes a sua memória pública se limita ao mito trágico da escritora frágil, vencida pela loucura e água escura, quando o que ficou tantas vezes esquecido foi a sua fúria política e intelectual. Woolf escreveu contra o fascismo, desafiou o patriarcado, ergueu-se em “Três Guinéus” como uma pensadora combativa e incómoda. Ao reduzi-la ao retrato romântico da artista atormentada, apagam-se as suas denúncias, dociliza-se uma raiva que era lucidez.
Frida Kahlo: vemos hoje a sua imagem a sorrir em canecas, t-shirts, agendas. Esquece-se que Frida era uma artista militante, comunista, filha da revolução, que inseria a radicalidade anti-colonial no próprio corpo e pincel. A sua arte era resistência feroz, manifesto político e existencial e, no entanto, quantas vezes a cultura de massas a despe da sua força ideológica, mercantilizando a dor insubmissa? A violência está em converter uma mulher indomável num ícone esvaziado.
Simone de Beauvoir, fundadora do feminismo moderno, autora de “O Segundo Sexo”, sistematicamente enredada em relatos públicos como “a companheira de Sartre”. Não há apagamento mais violento do que resumir o pensamento de uma mulher à sua relação com um homem. A autonomia intelectual de Beauvoir vai sendo diluída, década após década, em noticiários e biografias, como se precisasse de ser legitimada pelo outro para ter existido. A sua raiva foi domesticada, a sua política esquecida. Hoje, essa violência já não é apenas narrativa, é literal e algorítmica.
Não quero ser uma legenda, uma imagem manipulável, um dado para sempre disponível ao consumo indiferente.
Acredito, cada vez mais, que justiça também é esquecer, que precisamos de novos mecanismos legais, éticos e tecnológicos para permitir apagar, silenciar, proteger. Que persista, acima de tudo, o direito de rasgar as cartas: escolher o que vive em nós e connosco, e o que tem direito de desaparecer. Quero ser ouvida nesse direito, até ao silêncio final.
Ana Barbosa
Campanha 16 Dias pelo Fim da Violência contra as Mulheres 2025