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“ Os Caminhos do Mar em mão dupla – de lá para cá e de cá para lá”.

  • A Literatura, passados 276 anos-

“Com frequência escrevo sobre a convergência cultural entre a literatura nascida nos Açores ou criada por açorianos onde quer que estejam e a literatura dos catarinenses, desde os meados do século XIX até adentrar as primeiras décadas do século XXI, capturando novos e imensos olhares ante o fazer literário nesta era de inquietações, de turbulências políticas e sociais, de incertezas.”

Passados 276 anos o tempo imparável apagou as pegadas do passado, sobrevivendo memórias salvaguardadas e revitalizadas (ou, reinventadas) por cerca de dois milhões de descendentes dos cazaes açoreanos do longevo século XVIII.Com certeza, hoje, os catarinenses têm muito mais consciência e conhecimento do que representa essa história de seus ancestrais originários de um arquipélago formado por nove Ilhas vulcânicas, fincadas no meio do Atlântico Norte.
Afinal, qual o legado sobrevivente? O que sabemos?
Na verdade, sabemos que tudo resulta de um longo processo cultural de assimilação e transformação, um açorianismo sobrevivente sob novas roupagens, por todo litoral de Santa Catarina. Sustenta-se de práticas ancestrais assentadas na identidade cultural, tecida na almofada do patrimônio intangível, um dos pilares desse secular legado, construído por gerações de descendentes daqueles pioneiros visionários. Serve de exemplo lapidar a profunda religiosidade levada na grande travessia atlântica e que tem no Espírito Santo a maior devoção tornando-se um elemento unificador e de identidade
Afinal, construímos uma ponte de mão dupla deixando passar conhecimentos, emanar sabedoria, emergir afetos e pensar o futuro, promovendo um diálogo plural e multicultural com a sociedade que reside nas duas margens do Atlântico.
Cabe um olhar alargado para a criação literária catarinense de cariz açoriana tão presentes numa geração de escritores que integram a secular Academia Catarinense de Letras (e não só), a nossa mais antiga instituição cultural e literária, com excepcional trajetória em 103 anos de fundação e que teve, entre os seus instituidores, descendentes daqueles “casaes açorianos” aqui chegados há 275 anos.
Vozes que romperam séculos de história cultural por artérias da sua escrita e da sua arte. O próprio fundador José Arthur Boiteux e seu irmão Lucas Boiteux eram descendentes do casal Manuel Jacques e Catarina S. José, naturais da freguesia da Agualva, Ilha Terceira. Entre os fundadores com ancestrais nas Ilhas do Pico, Faial, São Jorge e Terceira destacam-se: Othon da Gama lobo d’Eça, Marcelino Antônio Dutra, Altino Corsino da Silva Flores, Antônio Mâncio da Costa, Francisco Gonçalves da Silva Barreiros Filho, Heitor Pinto da Luz e Silva, Luiz Osvaldo Ferreira de Mello, Nereu de Oliveira Ramos, Oscar Rosas Ribeiro de Almeida, Adolfo Konder, Virgílio Várzea, Arnaldo Claro de São Thiago. Todos, sem exceção, com um sangue açoriano a correr nas artérias
O bruxo Franklin Cascaes (1908-1983) na sua única obra publicada, O Fantástico na Ilha de Santa Catarina (I vol.1979, II vol.1992) saltam bruxas, feiticeiras, lobisomens, boitatás, benzedeiras, registrando o universo mágico que permeia a teia de relações sociais do povo açoriano da Ilha de Santa Catarina.
Vozes de um passado ainda recente como o Grupo Sul – e sua aproximação com os açorianos, como o escritor florentino Pedro da Silveira que trocou intensa correspondência com “os irreverentes modernistas catarinenses como Valmor Cardoso da Silva, Anibal Nunes Pires, Salim Miguel,” os jovens editores da Revista Sul do final da década de 40, chegando a publicar na revista – conta-nos escritor português Vasco Rosa.
Não tenho qualquer dificuldade em rotular a literatura feita no território barriga verde de Literatura Catarinense. Uma literatura que tem um dos maiores nomes da poesia simbolista – o poeta Cruz e Sousa, que que se faz representar no todo nacional da contemporaneidade por nomes com uma obra consolidada e reconhecida: Lindolfo Bell, Rodrigo de Haro, Salim Miguel, Cristovão Tezza, Dalton Trevisan, Godofredo Oliveira Neto, Flávio José Cardozo, Nereu Corrêa de Souza, Péricles Prade, Amílcar Neves e Sérgio da Costa Ramos.
Finalmente, busquei “nas pontes entre as ilhas do mar e as ilhas da terra das duas margens oceânicas, agora cada vez mais Rio Atlântico” de que fala Onésimo Almeida em O Peso do Hífen(2010:207) as intertextualidades nas escritas literárias. Surpreendeu-me o quanto do nosso imaginário é continuamente enriquecido pelo conhecimento dos Açores.
Com frequência escrevo sobre a convergência cultural entre a literatura nascida nos Açores ou criada por açorianos onde quer que estejam e a literatura dos catarinenses, desde os meados do século XIX até adentrar as primeiras décadas do século XXI, capturando novos e imensos olhares ante o fazer literário nesta era de inquietações, de turbulências políticas e sociais, de incertezas.
Não posso deixar de sublinhar as vozes de diferentes histórias, pensamentos e gerações a percorrerem os caminhos do mar – Vitorino Nemésio, Pedro da Silveira, Natália Correia, Eduíno de Jesus, Fernando Aires, João Pedro Porto, Urbano Bettencourt, Ivo Machado, Joel Neto, Adelaide Freitas, Marcolino Candeias, Álamo de Oliveira, Dias de Melo, Cristovão Aguiar, João de Melo, José Medeiros Ferreira, Diniz Borges, Vamberto Freitas, Nuno Costa Santos, Angela Almeida, Paula Lima, Pedro Maia, José Andrade.
Uma produção literária que a partir de um punhado de ilhas no meio do Atlântico também se torna universal, basta “cantá-las”. Urbano Bettencourt em O Amanhã Não Existe, na sua prosa instigante e aguçada, adentra o leitor na literatura de um povo e na sua visão do mundo além da fronteira do mar que o abraça, por terras da emigração.
O atento Vasco Rosa sugere um profundo debate sobre a cultura nos Açores, eu vou mais além e sugiro que abrace todas comunidades da diáspora açoriana. No artigo, “a Cultura dos engomados”, publicado no Diário dos Açores, Osvaldo Cabral enfatiza que uma política cultural não é de Governo e sim de Estado – promove dentro e fora por ser identitária. Também sinto falta desse debate que emergiam em colóquios, encontros, congressos colocando na vitrine uma vida intelectual riquíssima e uma criatividade sem igual.
Não queria de dar um ponto final ainda… quero os segredos das ilhas nos sussurros das muitas vozes açorianas das Ilhas e do mundo salvaguardadas no fascinante universo dos livros e até guardadas num único exemplar, como o grandioso A Açorianidade no Tempo reunindo 263 autores em 29.694 páginas, pela Nova Gráfica, um projeto idealizado pelo genial Ernesto Rezendes, o diretor visionário da Nova Gráfica.
Hoje, mais do que nunca, concordo com Urbano Bettencourt que entende o ilhéu como um homem sobre um rochedo, rodeado de mundos, imaginados, concretos, por todos os lados.E sem sentir que deva pedir desculpa por isso, seja a quem for. Porque estes são os verdadeiros açorianos das Ilhas e do Mundo – estão na margem de cá como nós estamos aí, orgulhosos da nossa herança.

Lélia Pereira Nunes

*Adaptação do texto apresentado em Montreal

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