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Cinzas ou Ressurreição?

Os da minha geração recordam-se, certamente, dos tempos em que a Quarta-Feira de Cinzas, sinalizava o início da Quaresma com cortes abruptos nas alegrias carnavalescas, impondo jejuns e abstinências de carne. Só o pagamento de “bulas” dispensava essas imposições, embora nem todos os fiéis tivessem disponibilidade de as adquirir.
Felizmente esse estratagema há muito acabou. Permanece, no entanto, a cultura religiosa dos Novíssimos (morte, juízo, purgatório, inferno e paraíso) que diaboliza a diversão e a sexualidade nas suas mais puras manifestações, atemoriza os menos esclarecidos e menospreza conceitos e propostas evangélicas que defendem a solidariedade, a caridade, a paz e a dignidade humana.
Esta inversão de valores subsistiu na pregação e na praxis da Igreja durante séculos.
Ainda hoje, a Quaresma resume-se a um grande cerimonial litúrgico com uma importante componente cénica e imagética, baseada mais na penitência corporal do que para na renovação e transformação pessoal e social de hábitos, mentalidades e comportamentos. O kairos, tempo propício à bíblica metanoia (conversão e transformação pessoal e coletiva) não impõe sofrimentos de pendor corporal, nem privações que afetam permanentemente os mais débeis, carenciados e excluídos, como se lê no Antigo Testamento: Eu quero devoção e não sacrifícios,conhecimento de Deus mais que holocaustos.(Oseias 6.6)
Sem pretender fazer juízos de valor sobre manifestações da piedade popular, habitualmente consideradas como património cultural e identitário, o importante é perceber as motivações pessoais e coletivas que as mantém.
As Romaria quaresmais são um bom exemplo de como, passados os tempos da cristandade, é possível determinadas práticas religiosas manterem o seu dinamismo pastoral atuando como processos alteração de comportamentos (metanoia) pessoais e coletivos que a Igreja Católica propõe para o tempo quaresmal.
O antigo cerimonial da Quaresma e da Semana Santa envolvia a participação das irmandades franciscanas masculinas dos terceiros, a maioria das quais extintas, cujos membros com os respetivos hábitos participavam ativamente na realização de procissões, suportando despesas e organizando os cortejos. Esse dinamismo decorria do acompanhamento e importância que o clero atribuía aos membros dessas instituições canónicas.
A Irmandade do Senhor Santo Cristo é em tudo semelhante àquelas irmandades, embora, desde a sua criação, fosse incumbida de realizar os festejos externos da Festa e de organizar as Procissões. Recentemente, para além disso, assumiu propósitos de intervenção sócio-caritativa, distribuindo todo o ano cabazes por dezenas de famílias carenciadas, a expensas das largas dezenas dos respetivos membros. Atitude de saudar, pois traduz, nestes tempos de dificuldade, a verdadeira mensagem bíblica que impele os fiéis a repartirem os bens e a atenuarem as gritantes carências das periferias humanas.
Esta motivação deveria igualmente mobilizar os crentes e as comunidades a olharem à sua volta e a compreenderem os sofrimentos e carências humanas de tantos cidadãos dignos do nosso respeito e dedicação.
Neste sentido o Papa Francisco, na sua mensagem aos fiéis propõe que “a Quaresma seja também tempo de decisões comunitárias, de pequenas e grandes opções contracorrente, capazes de modificar a vida quotidiana das pessoas e a vida de toda uma coletividade: os hábitos nas compras, o cuidado com a criação, a inclusão de quem não é visto ou é desprezado”. E continua: “O primeiro passo é querer ver a realidade. Também hoje o grito de tantos irmãos e irmãs oprimidos chega ao céu”. Num tom ainda mais incisivo Francisco pergunta: “o grito desses nossos irmãos e irmãs “chega também a nós? Mexe conosco? Comove-nos? Há muitos fatores que nos afastam uns dos outros, negando a fraternidade que originariamente nos une”.
Nos últimos tempos, temos ouvido agentes políticos pronunciarem-se sobre várias questões sociais, relacionadas com a pobreza e as migrações massivas, contradizendo direitos humanos e princípios evangélicos, com a maior displicência, sem que as autoridades religiosas e até políticas os contraditem.
De nenhum modo se pode permitir que a liberdade de expressão possa afrontar princípios fundamentais. Seria permitir, sem impunidade, a aprovação tácita de ideologias que colocam em causa os direitos à vida, à justiça e à fraternidade o que nos parece perigoso, tendo em conta exemplos da história contemporânea. A democracia e a dignidade humana não podem correr esse risco.
O próprio episcopado, o clero e demais organismos eclesiásticos, seguidores da mensagem evangélica não podem desconhecer ou ignorar ideologias “que assentam a sua mensagem política no ódio e na divisão que odeia o Outro e ataca os outros em função da sua pele e da sua origem, que defende a pena de morte ou a castração química, numa clara violação da defesa intransigente da vida, incluindo aos que falham gravemente, sem possibilidade de perdão”.1 Têm de denunciá-las, esclarecendo os fiéis e homens de boa vontade, como o fazem os papas nas suas Encíclicas e mensagens públicas dirigidas “aos homens de boa vontade”.
É fácil e útil apelar, sem mais, ao dever de votar. Mas importa salvaguardar, no momento da escolha livre, princípios sobre os quais não se pode transigir para salvaguarda da dignidade humana e da democracia.
Este é um tempo favorável (kairos) à renovação das mentalidades e de assumir novas formas de agir.
Ao nosso lado há famintos e carenciados escondidos das portas para dentro, com vergonha de mostrar pratos vazios. São nossos vizinhos, têm a mesma fé que nós e carecem da renúncia quaresmal que fazemos chegar a povos distantes…
Enquanto a Quaresma se limitar a reeditar solenes rituais litúrgicos e esquecer “o grito de tantos irmãos e irmãs oprimidos”, como diz o Papa, a Ressurreição do Justo não passará de uma memória insignificante que não gera nem vida nova nem nem comunidade. Ficaremos presos ao inevitável destino final, traduzido na velha máxima: “és pó e em pó te hás-de tornar.”

1https://setemargens.com/em-defesa-da-vida-porque-se-calam-os-bispos-sobre-o-chega/?

José Gabriel Ávila*

*Jornalista c.p.239 A
http://escritemdia.blogspot.com

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