Rui Bettencourt foi Secretário Regional Adjunto da Presidência para as Relações Externas do XII Governo dos Açores, Director Regional do Emprego e Formação e Gestor do Fundo Social Europeu. Foi ainda Director Territorial para o Plano de Formação Profissional no Governo da região parisiense, bem como professor convidado no CNAM da Universidade de Paris de políticas territoriais de formação. Foi Secretário-geral do Programa Eurodyssée da Assembleia das Regiões da Europa. É mestre em Ciências da Educação e pós-graduado em Formação de Adultos e em Prospectiva e Estratégia. Colaborador habitual do Diário dos Açores, concedeu-nos esta entrevista sobre a situação política na Região.
Como analisa os resultados eleitorais nos Açores e a viragem á direita?
Os eleitores açorianos escolheram e essa escolha deve ser respeitada. Evidentemente, podemos, e devemos, numa leitura mais atenta, verificar as dinâmicas de voto e o que isto significa. Mas, desde logo, como primeiro resultado eleitoral, a Coligação PSD/CDS/PPM obteve mais votos e mais deputados do que qualquer um dos outros partidos, respectivamente 42% e 26 deputados. O PS Açores, vem a seguir com 36% e 23 deputados e assistimos a uma subida acentuada do Chega que, com 9%, passa a ter 5 deputados, seguindo-se o Bloco de Esquerda, a Iniciativa Liberal e o Partido Pessoas, Animais e Natureza com 1 deputado cada,
Não temos assim uma maioria absoluta, que necessitaria pelo menos 29 deputados, mas sim uma maioria relativa da Coligação, um Partido Socialista fortemente representado, na oposição, e uma dispersão na Assembleia Legislativa Regional dos Açores, condicionantes da governação.
Esta realidade, embora com razões próprias aos Açores, está no “ar do tempo”. Pela Europa fora, e até em grande parte do mundo democrático, assiste-se por um lado a uma dispersão da representação popular e, por outro lado, a um deslize no xadrez político para a direita mais extrema.
É possível que este deslize para a direita mais extrema tenha a ver com a apropriação de muitos aspectos do descontentamento, mas, muito pior, decorra da instigação de receios e do mal-estar de uns ou de outros. Este movimento que teve início na Europa a meados dos anos 80 do século passado, acelerou na última década com o aumento da utilização das redes sociais e sua utilização em massa para criar o que tem sido um discurso de ódio, seguramente integrado numa estratégia de caos e de fazer vir ao de cima o que há de pior na sociedade. Para este movimento certamente que contribuiu o abandono pela esquerda de alguma linguagem e até de bandeiras políticas populares.
Mas há outras razões. Nos Açores, para além desta megatendência europeia e nacional, há uma votação que se fez, nestas eleições, muitas vezes com base em impulsos emotivos e não da ordem do racional. Ora, na campanha a esquerda foi mais racional a apresentar suas propostas e a direita jogou mais com as emoções, desde o soprar de brasas no populismo até ao acampamento na vitimização.
Não tenho a certeza de que isto represente uma viragem à direita, de fundo, mas admito que as esquerdas não tenham sabido ou desejado dar respostas mais apelativas do eleitorado.
A esquerda como campo político de progresso deve, pois, reinventar-se.
Não é possível imaginar sequer que num momento, nesta terceira década do século XXI, em que é necessário fazer face aos grandes problemas de governação, que são problemas de sociedade que tocam profundamente nas pessoas – a educação, a pobreza, a saúde, o futuro dos nossos filhos, a qualidade de vida, a distribuição de riqueza pelo trabalho, a habitação, a protecção social -, a esquerda não só não tenha presença marcante, mas, sobretudo, que não lidere as soluções e que não esteja com as pessoas e não as convença. Isto, evidentemente, exige a esquerda reinventar-se, voltando a alguns dos seus fundamentais.
Os longos períodos de governação com maiorias absolutas terminaram? Vamos assistir, daqui por diante, a uma maior fragmentação e, consequentemente, a arranjos parlamentares para a formação de governos?
Em política nada é definitivo. Mas nos próximos tempos teremos provavelmente uma situação de maior fragmentação, de maior instabilidade e de maior tensão na governação.
Esta situação deve ser, igualmente, uma lição para as maiorias absolutas: tem de haver, com maiorias absolutas ou sem elas, um profundo respeito por quem, na oposição, tem ideias a propor. Ouvir o outro não deve ser por necessidade ou calculismo de pequenos arranjos, mas sim por respeito pelas ideias dos outros e por acreditar que um projecto político pode ficar, assim, enriquecido.
É necessário introduzir na Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores não uma imposição – ou apoias ou fomentas o caos – mas sim uma pedagogia das convicções. Duvido que seja abandonando suas convicções que se fazem avançar as coisas mas, seguramente, não é fazendo amálgamas onde pode caber tudo que as coisas funcionam.
A confiança e a clareza dos termos preocupam-me, pois, neste processo. A utilização de palavras ocas ou sem consequência ou de palavras que deveriam ter um significado, mas cuja utilização é exactamente a contrária, ferem a confiança e a fiabilidade das discussões parlamentares.
Receio governos fracos, instabilidade, utilização da democracia para a fragilizar. Podemos estar a trilhar o mesmo caminho, que alguns na Europa e no mundo andam a trilhar.
Como vê a posição da Coligação em avançar com um Governo sem negociações pré-parlamentares e a posição do PS em recusar viabilizar o Governo da Coligação?
É legitimo a Coligação escolher, tendo o seu líder sido indigitado para Presidente do Governo dos Açores, o caminho que deseja seguir. Mas há da parte da Coligação uma postura de incoerência incompreensível e um discurso dúbio e contraditório – o que era bom em 2020, hoje já não é. O que teve de ser pré-parlamentar, para impedir que o partido mais votado não chegasse a formar governo, hoje já não é, quem está em primeiro lugar nas eleições é que deve governar (não foi assim); o Chega foi bom para viabilizar, hoje já não é e amanhã poderá voltar a ser. Isto faz-me lembrar o que dizia, com humor, Groucho Marx: “Estes são os meus princípios. Se não gosta deles eu tenho outros”.
É possível que o Chega e a Iniciativa Liberal ou / e o PAN se abstenham e deixem passar o Governo, e andemos nisso uns anos entre ameaças e abstenções.
Então, enquanto diz ir falar com todos, a Coligação afirma desejar que haja nos Açores uma Governação “não socialista”. Legítimo, claro. Mas como contar então com o PS? E o líder da Coligação afirma, logo na noite eleitoral, já conhecidos os resultados, que o programa do Governo será o que foi sufragado pelos açorianos. Então isto quer dizer que não será o programa sufragado mais o negociado com outros, o que é diferente.
Veremos o que acontece, mas também é possível que a Coligação esteja a pensar no velho chavão que é que quem derruba um governo fica prejudicado, para tentar condicionar ao apoio cego ou, mesmo, tornar, na prática, impossível o apoio de outros partidos e assim visar a maioria absoluta que tanto deseja.
É natural que, analisando com uma visão para além do calculismo imediato, o PS Açores deseje não entrar por aí, não se deixar misturar num centrão sem alma nem arrojo, não se sentir condicionado. E há ainda uma outra razão de estratégia política fundamental: ao entrar num centrão sem marca, mais espaço se deixaria para as ideias extremistas. Foi o que aconteceu, em grande parte, em França. A estratégia de colocar todos ao centro, de ir coligando uns e outros porque emagreciam, levou a que extremos muito mais poderosos ocupassem o espaço.
Outra coisa seria, à imagem do que já aconteceu em vários países europeus, como, por exemplo na Alemanha, a partilha do poder dividindo um mandato em dois tempos distintos onde cada um assume suas políticas apoiado pelo outro.
Ainda outra coisa seria a consensualização entre partidos políticos sobre algumas questões centrais de governação (que poderiam ser chamados de Pactos de Regime) – na Educação, na Saúde, na Protecção Social, na habitação, no trabalho e distribuição de riqueza, nos fundos comunitários. O que já foi feito algumas vezes. Eu próprio promovi com sucesso a unanimidade e o apoio para a preparação dos fundos comunitários de modo a termos força em Bruxelas e a representação da Diáspora, como fenómeno do Povo Açoriano. Mas isto só pode assentar num contexto muito próprio onde impera a confiança, onde se encontram valores comuns, uma metodologia de procura de um acordo e onde existe uma co-pilotagem das políticas a implementar que decorrem deste consenso. Mas estamos longe disso.
O Chega, por aquilo que significa, é um problema para os Açores, terra de pouca tradição extremista?
Evidentemente que as ideias do Chega não correspondem à matriz cristã e humanista dos açorianos, mas estes não estão prestes a revoltar-se por isso.
As ideias que o Chega traz consigo, a linguagem utilizada – não a propor um projecto ou ideias concretizáveis, mas a denegrir, num permanente apontar de dedo a pessoas -, o apelo à inveja, não são boas para nós, mas, se repararmos bem, já está em curso, aqui ou ali, uma normalização do Chega. O que ainda é mais preocupante.
Temos um problema de representatividade popular nos Açores? Os partidos não estarão a descurar a modernização do nosso sistema eleitoral?
Temos, em primeiro lugar, porventura, um problema de percepção do que é proposto pelos partidos políticos e, provavelmente, um problema de percepção, pelos partidos, do que as pessoas esperam deles.
Há, de seguida, certamente, novas maneiras de comunicar para “tocar” em algum público mais específico.
Dito e resolvido isto, que não é fácil, acho que os partidos políticos, sendo contundentes, devem não entrar nem em vocabulário agressivo (que, já vimos, chama a atenção, tem retorno e pode ter adesão), nem em populismos, mas respondendo aos verdadeiros problemas das pessoas.
Há quem ponha em causa o número de deputados actuais e até o círculo de compensação. Qual a sua opinião?
Diminuir o número de deputados que decorre da ideia que é muito caro ter tanta gente numa Assembleia regional, é perigoso pois traz subjacente a ideia de que a democracia custa caro (leia-se, nas entrelinhas: acabe-se com ela, sai mais barato). E isto seria quase impossível de resolver, sem acabar com os círculos de ilha. Para baixar o número de deputados, não se pode ter uma fracção de deputado numa ilha. O mínimo são dois deputados para garantir que a oposição esteja representada. E fazer um círculo único seria uma séria machadada na implicação efectiva de todas as nove ilhas na condução das políticas públicas dos Açores. Seria quebrar a união entre açorianos. Mas admito que pode haver quem tecnicamente tenha a solução, mas não poderá ser ao arrepio da participação de todas as ilhas no processo autonómico açoriano.
Há ainda a necessidade de actualizar os Cadernos eleitorais. Há algo a fazer no “refrescamento” destes Cadernos, pois não é compreensível termos mais eleitores que habitantes em idade de votar. A abstenção, em parte, vem daí. Por outro lado, seria importante, finalmente, podermos introduzir um círculo da Diáspora Açoriana para as eleições regionais.
Quanto ao Círculo de compensação, este permitiu abrir o leque de representatividade dos açorianos a sensibilidades políticas que existem e que, quer se goste ou não, não devem ser escamoteadas. Seria um erro promover sua extinção para resolver uma fragmentação e instabilidade que tem outra natureza.
Quais os grandes desafios que se vão colocar ao novo Governo?
Há três tipos de desafios que se vão colocar a um Governo dos Açores.
Desde logo, o desafio da governabilidade. Está em causa, em última análise, poderem, a prazo, serem apontadas a ausência de seriedade na condução da governação e nossa incapacidade à auto governação. Além de isto não ser bom para o bom funcionamento da Região.
Segue-se o desafio da coesão entre açorianos. Temos de agir para que esta coesão se faça mesmo, em termos territoriais, promovendo a participação de todas as ilhas no projecto açoriano, e em termos sociais, onde todos devem estar.
Depois, o desafio do progresso. É necessário que os açorianos possam progredir, nas suas vidas e nas perspectivas para os seus filhos. Nisto, há algumas áreas fundamentais: a educação, a protecção social, o trabalho e a repartição de riqueza (daqui decorre, naturalmente, a mitigação da pobreza); ainda a necessidade extrema de arrancar a execução de fundos comunitários, no quarto ano do Quadro financeiro comunitário e no PRR, E na saúde e habitação, em particular para os jovens, evidentemente.
Se formos novamente a eleições é um drama?
Ir a eleições nunca pode ser um drama. Mas não é bom não termos estabilidade.
E há um risco, caso a ingovernabilidade se instale nos Açores que é o de despertar nos centralistas e anti-autonomistas, a ideia de que a Autonomia não vale a pena. Que é do mesmo tipo que as ideias segundo as quais a democracia, os parlamentos, as eleições, tudo isso é muito caro e só vem daí o caos.
Assim, desejaria que, quando houver eleições, os eleitores voltem a escolher programas consistentes, personalidades e governos fortes.
A nível nacional, como perspectiva que será o resultado das eleições de 10 de Março?
Salvo alguma surpresa, sempre possível, com aparecimento de alguma maioria absoluta, é provável que a nível nacional se assista à necessidade de entendimentos parlamentares com vista à estabilidade governamental. Veremos em que termos, com que intensidade e com quem. Veremos também a dimensão e a atitude do Chega.
Mas o meu grande receio também tem a ver com as eleições europeias. Mais do que nunca, desde que votamos para um Parlamento Europeu, estas eleições de Junho próximo, terão seguramente um grande impacto nos Açores. Se, por infelicidade – e pode acontecer, se persistirem algumas tendências que estão a percorrer toda a Europa -, extremistas de direita que odeiam a União Europeia, entrarem de maneira significativa no Parlamento europeu, haverá um retrocesso, se não, mesmo a dissolução desta Casa Comum que é a Europa hoje.
Há uma ideia corrente que é a de que estes extremistas quando se confrontarem com o exercício do poder, se acalmam. Vale a pena relembrar os anos 30 do século passado, por exemplo na Alemanha. O que foi, então, posto em prática foi o que foi prometido e sufragado em eleições. Espanta-me sempre quando as pessoas ficam admiradas quando os políticos fazem aquilo que disseram que iam fazer.
E, a este propósito, claro que defendo, nas eleições europeias, a introdução de dois círculos próprios às duas regiões autónomas portuguesas, pelo facto de serem uma realidade política própria no panorama nacional e pelo facto de possuirmos um estatuto único na União Europeia, como Região Ultraperiférica, que são apenas nove em perto de trezentas regiões na Europa.