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“As pedras do sepulcro das nossas vidas e do nosso coração precisam de ser retiradas para descobrirmos o essencial da vida”

A mensagem do padre Duarte Melo, da paróquia de São José, neste dia da ressurreição de Cristo

A Páscoa é tempo de reflexão e renovação. É tempo de cultivar o amor e a fé em Jesus Cristo, pois Ele deu a sua vida por nós e hoje celebramos a sua ressurreição.
O Diário dos Açores esteve à conversa com o padre Duarte Melo, pároco da paróquia de São José, que fez uma reflexão sobre esta grandiosa festividade.
O padre Duarte Melo é natural da Salga, em Nordeste. Possui uma licenciatura em Teologia, pela Universidade Católica Portuguesa, é mestre em Pastoral da Saúde, pela Camillianum Istituto Internacionale di Teologia Pastoral Sanitária, e é também pós – graduado em Património, Museologia, Desenvolvimento, pela Universidade dos Açores.

Fale-nos um pouco sobre si.
Sou natural da Salga, em Nordeste. Estudei no liceu de Ponta Delgada e fiz o meu seminário em Angra. Foi no seminário que fui também discernindo a vocação. O seminário foi, de facto, o lugar que me ajudou a tomar decisões que não foram fáceis, levaram o seu tempo e foram amadurecendo.
Depois, fui colocado na paróquia de São José, em Ponta Delgada. Foi a minha primeira comunidade. Estive 10 anos em São José e dediquei-me muito às questões sociais, nomeadamente às questões dos repatriados, da economia solidária e da violência doméstica, com a criação de um centro de apoio à vítima.
Portanto, estive na paróquia de São José, que é uma paróquia formal enquanto comunidade, mas que tinha um bairro social do Lajedo e foi neste bairro social que eu procurei, de facto, aprofundar ainda mais o mistério sacerdotal, junto das pessoas. Vivi no bairro social. Quis esta opção de morar num bairro para sentir e viver o bairro. Criamos uma comunidade de moradores e começamos a trabalhar com aquelas crianças que estavam sempre rua. Criou-se uma estrutura de apoio às famílias. Também nesta altura nasceu a Kairós, num contexto da paróquia de São José, que depois alargou às outras paróquias de Ponta Delgada.
A seguir, fui para a Fajã de Cima. Estive 14 anos na paróquia de Nossa Senhora da Oliveira, com um imaginário rural muito acentuado, mas uma paróquia muito dinâmica e com cristãos muito participativos e empenhados. Nesta paróquia, a igreja estava com muitos problemas estruturais e tentamos minimizar o impacto da degradação como intervenção de fundo. Criou-se o Centro Social e Paroquial de Nossa Senhora da Oliveira e criou-se também todo um apoio às famílias.
Também estive ligado ao hospital enquanto Capelão. Trabalhei muito na dimensão da Pastoral da Saúde. Os hospitais são as grandes catedrais da actualidade, onde toda a gente vai nascer, toda a gente vai morrer e toda a gente se vai tratar. Aí, também percebi a importância de ser padre, de levar o conforto às pessoas e transmitir também a esperança, sempre a partir da força do evangelho.
Além disso, estive ligado à cultura, neste caso, ao Museu Carlos Machado, onde fui Director durante 15 anos. Criamos estruturas interessantes, nomeadamente o Museu Móvel, o Museu em sua Casa, o Serviço Educativo do Museu, entre outras.
Quando regresso à paróquia de São José, encontro uma paróquia muito envelhecida, com outras características, com património mais degradado. Vi que tinha que apostar também em termos de intervenção na questão da cultura, do património, e apoiando os mais pobres. Criamos o projecto de São Lucas, que dá apoio a 30 e tal famílias mensalmente com alimentos.
Paralelamente, também me tenho dedicado às questões da cultura aqui da paróquia de São José. Agora temos o projecto das Conversas da Sacristia e os 500 anos do convento de São Francisco de Ponta Delgada, que se irá estender até 2025, com um conjunto de eventos para assinalar a efeméride.
Procuro dedicar-me às pessoas, dou-lhes muita atenção. Estou sempre na igreja, da parte da tarde, para acolher as pessoas que aqui passam no âmbito da assistência da celebração de sacramentos e do aconselhamento espiritual.
Também vou visitar os doentes e é sempre um momento de grande ternura estar com eles, escutar os seus sofrimentos e perceber que os próprios doentes têm uma mensagem tão forte para nos dar, enquanto mensageiros do evangelho. Mesmo estando sozinhos fisicamente, eles dizem que se sentem sempre acompanhados por nós e isso é muito bonito. O amor é uma companhia e Jesus é o amor. É o amor das nossas vidas cristãs e ele é tudo para nós. Nós devemos aprofundar mais este amor, que é um amor que nos salva.

Na paróquia de São José, como são feitas as celebrações da Páscoa?
Estamos a viver a semana maior dos cristãos. A Páscoa desenvolve-se em três tempos, que nós designamos por Tríduo Pascal. Os cristãos são todos convidados, sem excepção, a atravessar a espessura destes mistérios.
Primeiro, através da Quinta-feira Santa com a instituição da Eucaristia e com o gesto que Jesus nos deixou no lava-pés, que é um gesto de serviço. Quinta-feira, às 19h, os cristãos reúnem-se nesta igreja fabulosa, em termos de espaço arquitectónico, em termos de beleza patrimonial, e celebram a instituição da Eucaristia, portanto, a ceia do Senhor e o lava-pés. Normalmente, os bombeiros colaboram connosco, eles é que fazem de apóstolos no lava-pés, porque os bombeiros enquanto homens e mulheres são pessoas dedicadas de doação, são pessoas de serviço permanente. E foi isto que Jesus Cristo fez: socorrer todos. Todos os que eram atribulados no corpo e no espírito.
Depois, há a Transladação do Santíssimo Sacramento, que ficará até às 10h em adoração e a igreja entra num profundo silêncio, o silêncio já da paixão.
A seguir, através da Sexta-feira Santa para celebrar a paixão de Cristo, consagrando o nosso coração ao coração de Jesus, que é um coração que está ferido na cruz, e sermos solidários com todos os crucificados na história.
A Sexta-feira Santa remete-nos para isso e faz-nos recordar que foi pelo paradoxo da cruz, do absurdo, que ganhamos a redenção. Neste dia, às 15h, a igreja está aberta novamente aos fiéis, não há luz, não se acende velas. É uma celebração muito contida, com silêncio contido e o sofrimento desta forma contido. Os cristãos são chamados a revisitar a paixão de Jesus, a escutar o texto de São João que nos fala de todo o processo de condenação até à morte de Nosso Senhor. São convidados também a abeirarem-se da cruz e a contemplarem a cruz de Nosso Senhor.
Ainda, neste dia, a colecta que é feita destina-se aos lugares santos, ou seja, para a Terra Santa. E a Terra Santa está a viver tempos tão difíceis, de guerra. Devemos rezar pela paz e ter gestos de proximidade junto dos nossos irmãos que estão a viver naqueles lugares, ali na faixa de Gaza. O que está a acontecer é um escândalo para o mundo de hoje, esses focos de guerra a que o Papa chama de “fragmentos da III Guerra Mundial”. Temos que rezar muito pela paz.
O Sábado é atravessar precisamente a Vigília Pascal, que é a mãe de todas a vigílias, em que os cristãos se unem para escutar a palavra de Deus de uma forma mais demorada, escutar os textos sagrados da bíblia, do antigo testamento, do novo testamento. Esta noite da Vigília Pascal é uma passagem das trevas à luz, do sepulcro à ressurreição.
Há aqui na Vigília Pascal 3 símbolos poéticos muito fortes: a água que lava, que purifica, que dá vida; o fogo que aquece, que também purifica, que aproxima; e o cântico do aleluia que é proclamado em todo o mundo que Jesus ressuscitou e que a morte não tem a última palavra, a última palavra é da vida. A última palavra é do amor, porque o amor é mais forte que a morte. Os cristãos com alegria entoam esse cântico do aleluia, a pedra do sepulcro foi retirada. As pedras do sepulcro das nossas vidas e do nosso coração também precisam de ser retiradas, precisam de rolar para descobrirmos o essencial da vida e o que nos pode trazer alergia e esperança.

Enquanto pároco, como se prepara espiritualmente para essas celebrações?
Preparo-me através da oração, da meditação e da leitura dos textos bíblicos. Preparo-me também através da homilia, mas sobretudo da oração, que é um exercício que não é nada fácil, rezar. Temos sempre muitas solicitações, há muitas distracções, há muito ruído e rezar é um trabalho muito árduo e que requer disciplina.
Custa rezar, é difícil rezar, mas foi isto que Nosso Senhor nos mandou. Estas celebrações têm que ser muito meditadas e muito rezadas para nos associarmos de uma forma mais pura aos passos de Nosso Senhor Jesus Cristo e ao Mistério Pascal: Paixão, Morte e Ressurreição.

Acha que tem havido alterações na maneira como os cristãos comemoram a Páscoa?
Não, porque isto é uma repetição. É uma repetição que evoca uma memória, uma memória que se actualiza.
O que nós notamos é que, na Semana Santa e no Tríduo Pascal, há muitos acontecimentos que estão fora do registo católico, mas são acontecimentos do mundo.
Quem quer celebrar a Páscoa, quem tem uma fé convicta enquanto cristão, dedica-se e participa em todo este cerimonial de vida. A igreja tem sempre gente nestes dias.
Claro que se formos olhar a faixa etária, temos mais idosos e isso requer outro tipo de reflexão que não é chamada para aqui, agora.

Considera que a importância dada a bens materiais, como amêndoas, folares, e ovos de chocolate, tem vindo a afastar os cristãos do verdadeiro significado da Páscoa?
Isto é importante, são sinais da festa. O almoço de Páscoa, o jantar, a troca de amêndoas, isto é bonito. São expressões de quem está a viver uma festa e os cristãos estão a viver uma festa. Na festa há comida, há bebida, há bolos. Não podemos estar aqui com uma visão dicotómica do sagrado e do profano. Tudo isto integra as celebrações.
O afastamento dos cristãos deve-se à falta de fé. E aqui colocamos a questão à igreja de “Como passar a fé? Como transmitir a fé com linguagens contemporâneas?”. O problema de hoje é mais este, é uma questão de fé.
Claro que o mundo está organizado enquanto mundo e a igreja está nesse mundo. Nós não estamos nas nuvens, por isso devemos ser fermento deste mundo, capaz de levedar uma massa, mas respeitando a pluralidade do mundo de hoje e as suas dinâmicas.

O mundo está a passar por um período extremamente difícil, quer pela persistência de guerras, quer pelo aumento de dificuldades financeiras com que as famílias se têm deparado. Sente que a sociedade está a passar por uma fase de descrença em Cristo? Que palavras deixaria a quem está a abandonar a fé?
O contexto é difícil, sobretudo na Europa. Para a África, para a América e até mesmo para a Ásia está a haver muitos mais cristãos. A Europa é envelhecida em termos demográficos e é uma Europa que, de certa forma, complexou-se também na sua própria identidade e nas suas próprias raízes. Pelo complexo e erros da história, em que a igreja participou neles, a igreja foi-se complexando e inibindo.
Por outro lado, a própria laicidade, a própria organização da sociedade, que é uma sociedade neoliberal muito marcada por vectores de consumo e de prazer, também cria ídolos, divindades, e as pessoas dispersam do Deus verdadeiro e criam outros ídolos. São ídolos que há mínima coisa caem, é tudo muito efémero.
Porque é que estão a abandonar a fé? Esta pergunta tem que ser feita. Toda a gente tem fé. Ninguém vive sem fé. A fé não é necessariamente a fé no transcendente. A fé pode ser no sentido da vida, a fé pode ser acreditar na pessoa com quem vive ao lado.
A fé pode ser, de facto, vivida na dimensão do religioso. A palavra fé é muito abrangente. Quem abandona a fé, deixou de viver, deixou de acreditar. E quem deixa de acreditar vai morrendo, vai mirrando interiormente. Todos precisamos de acreditar, nem que seja acreditar uns nos outros. Isto é que é o grave problema, é precisamente o individualismo e dispensar o outro.
A fé humaniza-nos também. Há pessoas que dizem ter tanta fé e sabemos que não a têm, há outros que já abandonaram a fé, mas admiram quem a tem, e depois há aqueles que pedem muita fé e eu costumo dizer que devemos ter fé não mais que uma semente, ou seja, que não dê nas vistas, mas que tenha força de crescer e que nasça uma árvore. Isto é que é ser cristão.
Esta fé procura-se. Procura-se com perguntas, com inquietações e com dúvidas. A dúvida e a inquietação são energias muito boas que nos põem em movimento para nos encontramos connosco e com Deus.

E neste Domingo de Páscoa, que mensagem gostaria de transmitir aos crsitãos?
Que sejamos testemunhas da ressurreição. Que os cristãos sejam testemunhas da ressurreição, porque Jesus ressuscita no mais íntimo de cada um de nós.
A Páscoa celebra-se neste contexto de Primavera, em que tudo se renova. A natureza renova-se e os cristãos são também chamados a renovarem-se interiormente, a aprofundarem a sua fé em Nosso Senhor Jesus Cristo. A descobrir a espiritualidade cristã, que é uma espiritualidade assente no mundo com os pés na terra, mas que olha para o céu.
Portanto, há aqui uma perspectiva sempre do futuro, por isso é que os cristãos são pessoas de esperança, porque são pessoas de fé e é o futuro que vem ao nosso encontro. Deus vem do futuro ao nosso encontro. A Páscoa também nos traz essa novidade primaveril desta renovação interior e desta vida espiritual.

Nicole Bulhões

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