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O meu 25 de Abril

Considero-me um sentimental.
Quem me conhece sabe que facilmente tenho a lágrima ao canto do olho. Mas sei que há pessoas que teem outra opinião a meu respeito. Algumas chegam mesmo a dizer que sou arrogante. Mas a essas, não dou muito crédito…
Esta introdução tem muito a ver com o que direi nos parágrafos seguintes.
Nasci em Santa Cruz da Lagoa, como sempre me disse a minha querida e saudosa mãe. Mas fui registado na Freguesia do Rosário, por ter chegado ao então lugar do Cabouco – só adquiriu a sua independência do Rosário como freguesia em 1980 – como criança de colo.
A razão disso ter acontecido baseou-se no facto da mãe da minha mãe ser natural da freguesia sede de concelho e minha mãe ser muito querida da sua avó, daí essa sua passagem por Santa Cruz durante alguns anos, mesmo que alternados, já que a família do meu avô paterno era toda do então lugar do Cabouco.
O Cabouco, precisamente, na altura da minha infância e depois adolescência não devia ter mais do que 700/800 pessoas. Hoje anda à volta das 2 mil!… Não tinha luz e a água canalizada só foi concretizada para aí em fins dos anos sessenta… A Igreja de Nossa Senhora da Misericórdia, com as suas missas, (poucas) festas e catequese servia de centro nevrálgico do aglomerado para toda aquela gente…
Lembro-me que a juventude do meu tempo se agarrava à minha bola como única forma de divertimento na aldeia. Os jogos eram entre ruas. Jogava-se no baldio onde hoje há uma carreira de casas no lado sul à entrada do Bairro Dona Amélia para quem vem do Rosário pela estrada a poente da agora freguesia; e de quando em vez recebíamos equipas do Rosário (do Porto dos Carneiros, da Rua da Fábrica, do Centro do Rosário, da Atalhada, do Bairro dos Pescadores…); de Santa Cruz, do Porto Formoso, do João Bom da Bretanha, entre outras…
O outro divertimento encontrado pelos jovens e menos jovens no Cabouco eram as conversas no adro da Igreja ao domingo depois da missa das 10h, que à noite era dia de «falar à janela com a(s) noiva(s)», e à noite no decorrer da semana. Quando não alguns jogos de sueca nas duas ou três tabernas ali existentes.
E é aqui que bate o ponto.
No adro da Igreja falava-se de tudo. Das potenciais noivas, aos resultados dos jogos do Benfica e Sporting, que do Porto, naquela altura, anos sessenta, ninguém se considerava. Do futebol regional, o Operário, por vezes o Santa Clara, também merecia tempo de conversa. Falava-se de cinema, sobretudo dos filmes de ação, vistos por muitos poucos, por falta de dinheiro e por haver a necessidade de rumar ao Rosário, à Casa do João Pedro, a três quilómetros de distância, a pé, muitos obrigados a caminhar descalços…
Também era lugar que servia para arranjar trabalho entre os camponeses…
Mas nos serões passados no adro da Igreja de Nossa Senhora da Misericórdia, que começavam depois da ceia (jantar, para a maioria era o almoço, isto é, o repasto do meio-dia) e se prolongavam noite dentro, cuja única claridade era quando havia dias de Lua cheia, do que mais me metia medo era quando se falava na Guerra em África.
No Cabouco, que me lembro, a cada incorporação de novos mancebos, uma grande parte deles seguia para Angola, Moçambique ou Guiné. Eu próprio tive um tio (Manuel Marques, por sinal o nome de meu avô, seu pai) em Moçambique, um primo (Gilberto Marques Correia, hoje vive em Providence, Rhode Island), em Angola, e um compadre (Alberto Soares, que vive em Ontário, Canadá) na Guiné.
Dos soldados caboucoenses que regressavam do Ultramar, onde felizmente ninguém morreu nos 13 anos que durou a guerra, era ouvir as suas histórias. Umas bem contadas e outras não, certamente.
Como adolescente, eu «comia» todas aquelas palavras como sendo verdades. Matar turras desta e daquela maneiras, quando não dar «cronhadas» nos turras em sanzalas; e atrevessar rios cheios de crocodilos e outras espécies selvagens, como as cobras, etc… eram moeda corrente. Tudo isso me amedrontava por pensar que o meu dia de demandar a África chegaria e que eu, que nem num gato ou cão era capaz de tocar, como iria ter coragem de matar meus semelhantes?…
Posso dizer que vivia amargurado só em saber que o meu destino (mais que certo) seria malhar comigo na tropa e, depois, desandar para um terreno desconhecido e muito minado, como ouvia dizer aos meus conterrâneos. Morrer, era medonho, mas ficar estropiado ainda me causava mais temor. E poder lidar com cobras e crocodilos também me deixava estarrecido de medo.
Foi assim, muito preocupado que vi meu pai partir para o Canadá sem me poder levar. Ele bem tentou. Porém, sem sucesso.
Mais tarde, como segunda vaga, foi minha mãe que deixou a ilha mais minha irmã Mariana (casou e vive em Bristol, Rhode Island) e meu irmão Luís (vive na Colúmbia Britânica, onde leciona), e eu voltei a ficar, pois incorporar o serviço militar traçara-me desde há muito o destino.
E vem a Revolução!
Desde logo, soube-se que a Guerra no Ultramar ia acabar. Essa premissa deixou, naturalmente, todos os rapazes da minha idade felizes, pois a partir dali podiam, de certa maneira, considerar-se livres. Pelo menos da guerra.
E foi o que aconteceu, mesmo se alguns ainda embarcaram com destino ao Ultramar por algumas semanas, ou meses. Mas o sentimento já era outro. E o regresso não demorou, pondo ponto final numa situação de difícil compreensão, já que todos sabiam que Portugal não podia, nem devia continuar a ocupar aqueles territórios africanos quando todos os outros países colonialistas já há anos que tinham dado as respetivas independências.
Com a decisão de Vasco Gonçalves permitir que os mancebos com famílias no estrangeiro pudessem deixar o país por um período de três meses, aproveitei a deixa e voei para Montreal, para junto da Família, isto apesar de outros considerandos que ficam para contar noutra ocasião.
Já em Montreal e não tendo 21 anos, que era a idade da maioridade, na Imigração canadiana fui considerado apto para ficar no país, sob a responsabilidade de meus pais.
Isso obrigou a que ficasse como refratário perante as entidades oficiais portuguesas, sobretudo porque eu estava em ano de ingressar no Serviço Militar e só tinha recebido, não se esqueçam, autorização de 3 meses para me ausentar… Esta situação foi regularizada mais tarde, obedecendo a amnistias governamentais.
Foi assim que deixei para trás o meu emprego (no Varela) e a minha carreira de jogador no Clube Operário Desportivo, que era a minha grande paixão.
Casei e tive três filhas numa situação também algo recambolesca. Podia dar um filme ou um romance! Sobre isso, talvez haja possibilidade de escrever noutra ocasião.
Ah, e depois de sete anos no Canadá, regressei à terra, que sempre foi o meu sonho. Mas só deu para «aguentar» na ilha sete meses… Outro capítulo da minha vida com muito para contar.
Já à pergunta «Que memórias guardas do 25 de Abril?», que me fez o diretor do Portuguese Times para dar corpo a este texto, eu direi que o Dia 25 de Abril foi um dos dias mais felizes de toda a minha vida por todas as razões evocadas na leitura desta peça.
Mas, caros leitores do Diário dos Açores, o 25 de Abril, ainda hoje, continua, passados 50 anos, a dar-me uma felicidade desmedida, que se reflete no facto de ter podido excercer no Canadá a profissão de jornalista, outro dos meus sonhos de criança!
Com efeito e a concluir, diria que sem a gloriosa jornada do 25 de Abril de 1974 não me teria sido possível, de certeza, dar educação universitária a três filhas, ter assegurado a minha independência financeira, adquirido o uso de outras línguas, contactado com muita gente de outras origens, ter lidado com personalidades dos mais variados quadrantes da sociedade, viajado algures e, mais do que tudo, ter tido a grata possibilidade de exercer, como modo de vida, esta maravilhosa profissão que dá pelo vocábulo de jornalista!

Norberto Aguiar *

*Proprietário do jornal LusoPresse e do programa de televisão LusaQ TV, em Montreal

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