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Folie à deux

A quem pertencem as histórias?

Eu, que não estava nada confortável com a ideia que a medicina assentasse só sobre as ditas ciências duras, vim a encontrar algum consolo nas Humanidades, parafraseando João Lobo Antunes. Este consolo consolidou-se quando descobri a Medicina Narrativa e algumas das suas aplicações, mas antes disso houve um tempo em que achei que o podia encontrar na partilha de histórias colecionadas durante o exercício da profissão.
Talvez inebriada pelo trabalho de autores como Oliver Sacks, o famoso neurologista com especial aptidão para a literatura de divulgação médica, embora sem grande pretensão de me equiparar, pensei que deveria partilhar algumas histórias em particular, quer pelo seu valor descritivo, original, quer pelo potencial injuntivo, já que as narrativas podem ser poderosas na desconstrução do estigma da doença mental e na promoção de empatia.
Mas algumas pessoas a quem pertenciam estas histórias trocaram-me as voltas (felizmente).
Recordo-me particularmente de uma pessoa que acompanhei alguns anos e que após um único episódio psicótico, sofreu uma abrupta mudança na sua trajetória de vida.
Conheci-a já estabilizada, após instituição de terapêutica eficaz, que cumpria escrupulosamente, temente da repetição daquele episódio, e com uma capacidade extraordinária de articular a sua experiência de doença.
Porque aqueles meses em que vivera distante da realidade eram o mistério da sua vida, passámos muitas das consultas a rever os inusitados acontecimentos daquele período, a forma como colocavam em causa as suas crenças e os valores por que se regia. E eu adorava porque a riqueza das suas descrições era a ilustração perfeita dos livros de psicopatologia que ia estudando. Então eram consultas estrategicamente agendadas para que se pudessem prolongar.
Esta conjugação – que a pessoa consiga identificar o que lhe aconteceu como sendo uma doença e que esteja disposta a falar sobre isso detalhadamente – é pouco frequente nas doenças que cursam com episódios psicóticos. Quando me explicou que a sua consciência da doença se devia a um documentário da BBC onde o ator David Harewood descreve a sua própria vivência de um episódio psicótico, sugeri-lhe que fizesse o mesmo, que partilhasse a sua história, com as suas ferramentas. Afinal, uma das suas licenciaturas era em literatura.
Agora, com a distância que o tempo e o próprio crescimento me permitem, penso que talvez não devesse ter insistido nessa ideia, que foi educadamente recusando com várias explicações plausíveis. Percebo que aquilo que para mim era fonte importante de aprendizagem e deleite, era a narrativa da experiência mais dolorosa da sua vida. Gosto de acreditar que a construção narrativa no espaço terapêutico lhe trouxe alguns ganhos como, por exemplo, ter-lhe permitido vislumbrar a doença como algo que lhe tinha acontecido, mas independente da sua identidade, mas a partilha e a divulgação fora desse espaço, por muito bem intencionada que pudesse ser, era um projeto mais meu do que seu.
E essa foi a primeira de várias vezes em que, entusiasta e imberbe, vi recusado o meu pedido a pessoas com experiência de doença mental grave que partilhassem com o mundo as histórias das suas vivências, através de diversas formas de expressão artística. As respostas entre “não é algo para que goste de olhar” ou “o trabalho desse período está escondido” fizeram-me perceber que, se a divulgação das histórias de doença pode desconstruir o estigma, a romantização da doença como fonte de inspiração artística pode reforçá-lo e que a partilha, a acontecer, deverá respeitar os tempos e os termos da própria pessoa.

Mariana Bettencourt*

  • Médica Psiquiatra e Sexóloga Clínica,
    Pós-graduada em Suicidologia e Psicoterapias Cognitivo-Comportamentais, com formação em Medicina Narrativa;
    Vice-presidente da APF – Açores;
    Colaboradora da UMAR Açores.
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