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Folie à deux: Lei de Ribot

Estou a ler o livro “A Força Das Sentenças”, de Pedro Almeida Maia, e as palavras doloridas do Professor Penedo Quental remetem-me constantemente para um homem com um quadro semelhante que vi uma única vez, há muito tempo. Tento lembrar-me da sua imagem, a muito custo, que a minha memória visual nunca foi maravilhosa. Sei que era esguio e tudo em si denunciava fragilidade: o corpo, a indumentária, o cumprimento e o olhar dos dois polícias que o acompanhavam, quase a pedir desculpa pela responsabilidade que lhes tinha sido incumbida, de acompanhar alguém tão pouco ameaçador.
Ao tentar reavivar a memória, procuro no caos das minhas notas a pequena frase que sei que escrevi depois de o ver. Encontro-a e o título do documento: “passou um estilhaço aqui” denuncia a motivação do registo: uma pessoa com demência que esteve num teatro de guerra. Ainda durante o curso de Medicina dediquei muito tempo a estudar o impacto das vivências de guerra em pessoas que lhe tinham sobrevivido, particularmente em ex-combatentes. Que a Demência, em particular a que acontece na Doença de Alzheimer, reavive estas memórias, renova-me o interesse. Põe-me a pensar na forma como são codificadas as memórias, particularmente as relacionadas com o trauma, mecanismos que estas doenças, por muito funestas que sejam, vieram ajudar a compreender.
Mas voltando a esse dia, ali estava eu, numa tarde de primavera tardia ou verão inaugural, tentando decidir se abrir as janelas teria algum impacto no calor bafejante do Nordeste Transmontano, num gabinete de cores desmaiadas, fora do meu horário de trabalho, já que a urgência do caso (e uma série de falhas de comunicação) assim o exigia.
Depois de ambos instalados e feitas as apresentações, perguntei-lhe se sabia por que motivo estava ali comigo. Após uma curta hesitação, perguntou-me se era por causa dos esquecimentos. Sem esperar a resposta, passou a mão junto à tempora esquerda e tentou justificar:

  • Sabe, passou-me um estilhaço mesmo aqui, quando estive na guerra.

No agora frágil puzzle da sua biografia, só aquela experiência podia justificar que lhe faltassem tantas outras peças.
Parecia que estava mesmo esquecido, mas não era esse o motivo pelo qual estávamos ali. E como não era, também não me cabia a mim explicar-lhe a inexorável evolução da doença ou prepará-lo e aos seus familiares para uma perda progressiva da autonomia num país longe de estar preparado para a realidade que é ser um dos primeiros da lista da OCDE nas estimativas de prevalência de Demência, mas dos últimos no que ao acesso a cuidados diz respeito (ver relatório Health at a Glance 2023 da OCDE, disponível online).
Neste cenário, assumo o cinismo e penso que realmente será uma benção não ser capaz de formar novas memórias, talvez isso tenha permitido àquele outro senhor (que tinha uma pronúncia igual à do meu avô) o benevolente desconhecimento do facto de se encontrar há vários meses num hospital, não por precisar de cuidados de saúde mas por não haver outra resposta mais adequada.
Mas tento refrear-me aqui, volto ao gabinete abafado e triste, e lembro-me porque tive de escrever a nota depois. É que não é benção nenhuma ser acometido por uma doença que põe em evidência essa teoria formulada por Ribot, de que há um gradiente temporal nas memórias que vão sendo perdidas. Porque o que isto dita é que aquele homem só poderia esquecer a guerra quando finalmente se esquecesse de si.

Mariana Bettencourt*

*Psiquiatra e Sexóloga clínica

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