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Folie à deux: Mau tempo de sul

Aproximava-se uma tempestade de sul, com nome de mulher que não fixei. Ouvira nas notícias pelo rádio que trazia comigo.
Homens, mulheres, velhos e algumas crianças, mas sobretudo velhas, nas suas melhores roupas, lavadas em Chanelnº5, desapareciam no instante em que cruzavam a porta da igreja. Numa breve corrida, os mais atrasados deslizavam até aos últimos lugares. Os turistas, alheados, fotografavam na praça. À distância, eu assistia à azáfama, enquanto o sino da igreja badalava e uma voz familiar
— A casa do teu Pai? Do que te abandonou ou do Outro, de quem esperas salvação? – troçava, entre risos. Subi o volume do rádio que ouvia pelos auscultadores. Não conhecia a música, mas ensurdecia a voz e isso bastava-me.
Costumava ir à missa ali, uma ou duas vezes por ano, quando era miúdo. Ainda oiço a voz meiga da minha mãe,
— No domingo vamos à cidade para a procissão, Joaquim. Se fores um bom menino, podes escolher entre as pipocas ou o algodão-doce.
O meu pai alagou os miolos em vinho de cheiro. Ocupação a tempo inteiro a que se dedicou desde o dia em que a minha mãe morreu. Eu e o meu irmão, largados à sorte. O mau tempo de sul, que esconde o sol durante o dia inteiro, tenho a impressão que começou nesse dia. O último da minha infância.
— O teu irmão embarcou para a América. Abandonou-te! Não vales nada, és um miserável como o teu pai! – guinchava-me ao ouvido aquela voz.
— Cala-te!!– gritei, farto, farto, farto de a ouvir.
Os turistas assustados com o grito afastaram-se, na dúvida entre o passo acelerado ou o de corrida. O terror nos seus rostos quase me deu vontade de rir.
Desliguei o rádio, guardei-o, levantei-me e dirigi-me para a igreja. Entrei, atravessei o corredor central e sentei-me ao fundo, longe de tudo e de todos.
— Corações ao alto! – exclamou o padre.
Tinha doze anos quando o cancro levou a minha mãe. Não me cheguei a despedir. O meu pai, a meio da noite,
— Não é nada, Joaquim. Vai-te deitar! – rugia, enquanto a ajudava a entrar na ambulância. Ela, coitada, tossia, tossia, tossia…seria sangue? Foi a última vez que a vi. Não me cheguei a despedir.
Nesse ano, mas já com treze anos, experimentei cocaína — a do italiano — pela primeira vez. Aquela mecha, a cara dormente, o coração ao alto, a mil! O maligno veio uns tempos depois.
— O maligno?
Maligno é o nome que dou àquela maldita voz, que não me larga desde o meu primeiro internamento no Egipto. Foram seis, ou talvez sete, depois desse.
— Na hora em que Ele se entregava para voluntariamente sofrer a morte, tomou o pão… – continuava o padre.
A sensação daquela primeira vez não encontra tradução em palavras que eu conheça. Foi o beijo de Deus. Depois disso, nada mais é como dantes. Nada. Há, se tanto, algum alívio. Momentos. Com essa sintética, então…
— Este é o cálice do meu Sangue…– prosseguia o padre.
Naquele instante, ao ouvir estas palavras, tudo se revelou em mim.
— Fazei isto em memória de Mim.
Todos, até os santos, notaram. Num súbito movimento sincronizado, todas as cabeças se voltaram para mim. Um segundo de sepulcral silêncio. Depois, os gritos cortantes e os centuriões, de todos os lados, a lançarem-se sobre mim.
— Não vales nada! De que é que estavas à espera? Da salvação, seu verme?
As costelas quebradas com o peso e os murros dos brutamontes – e dos santos! O sabor metálico a sangue na boca e as memórias vívidas da minha mãe, do meu pai,
— Não é nada, Joaquim. Vai-te deitar!
Depois, só me recordo da senhora enfermeira me acordar e de estar aqui consigo, Doutor.

João Mendes Coelho*

*Médico psiquiatra e adictologista

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