Os dados para análise da semana: Endividamento das famílias aumenta exponencialmente em relação a 2015, por causa dos créditos à saúde
Os números divulgados na semana passada pelo Banco de Portugal (BdP) mostram que os empréstimos contratualizados entre o setor financeiro e as famílias para fazer face a despesas de saúde, educação e energias renováveis têm crescido a um ritmo vertiginoso, ao longo da última década. Em 2023 foram concedidos 140,9 milhões de euros para aquelas finalidades, o que significa quatro vezes mais do que o valor financiado em 2015 (32,6 milhões), último ano de governação nacional PSD/CDS, noticiou a comunicação social há poucos dias. De acordo com a Associação de Instituições de Crédito Especializado (ASFAC), os seus 28 associados concederam 125 milhões de euros nestas categorias, 89% daquele montante. Por questões concorrenciais, a instituição não está autorizada a refinar a estatística além dos padrões do supervisor, mas ao DN/Dinheiro Vivo, Duarte Pereira Gomes, seu secretário-geral, admitiu que, na variação observada, pesam sobretudo os segmentos da saúde e das energias renováveis.
Os últimos dados do Pordata mostram que, entre 2015 e 2021, a despesa total dos portugueses com bens e serviços de saúde aumentou 37%, para os 8,4 mil milhões de euros, equivalente a 3,9% do PIB daquele ano.
O Prof. Pedro Pita Barros, especialista em Economia da Saúde, explica que a procura por empréstimos decorre do elevado valor de pagamentos diretos. Parte significativa dessas transações vão diretamente para prestadores privados, sem haver cobertura de seguro, e têm como principal destino cuidados em ambulatório, onde se inserem consultas e exames (38%), comparticipação em medicamentos prescritos (24%) e recurso a hospitais (15%). Reconhece que “haja despesas elevadas em algumas famílias que tenham levado à procura de crédito para satisfazer essas necessidades” – o que, na sua leitura, será sinal de falha de cobertura do Serviço Nacional de Saúde (SNS) sempre que em causa estejam cuidados imprescindíveis.
Nuno Rico, da Deco Proteste, referiu que o “maior recurso a tratamentos fora do SNS, através de entidades privadas, fruto dos problemas que têm vindo a ocorrer neste serviço público”, é a principal justificação para este cenário.
À medida que as fragilidades do SNS se acentuam, o sector da hospitalização privada em Portugal expande-se, tendo apresentado em 2022 crescimentos nas consultas (15%), cirurgias (27%) e urgências (7%), face ao período que antecedeu a pandemia – e, em 2023, estima a Associação Portuguesa de Hospitalização Privada (APHP), os números terão continuado em trajetória ascendente. A quantidade de pessoas protegidas por seguros de saúde também subiu para 3,6 milhões até setembro último, mais 1,3 milhões em relação a 2015, refere a Associação Portuguesa de Seguradores (APS).
Já o presidente da Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública (ANMSP), Gustavo Tato Borges, disse à Rádio Renascença que o dado de que a área da saúde tem forte contributo no endividamento das famílias portuguesas confirma que o Serviço Nacional de Saúde (SNS) não está a dar resposta às necessidades da população. Para o presidente da ANMSP, estes números deixam “uma noção clara de que o SNS não está a chegar onde devia”, embora “o fenómeno não seja novo”. Se nada for feito para inverter esta tendência, o Dr. Tato Borges avisa que “a população com menores rendimentos vai ficar bloqueada”, sem acesso aos cuidados de saúde. Apela, por isso, ao próximo Governo para que “olhe para estes dados e coloque a saúde e a prevenção da doença em cima da mesa, de uma forma categórica, com um investimento cabal nos cuidados primários, com investimento cabal na saúde pública”.
O mesmo apelo tem de ser feito ao novo governo regional dos Açores, digo eu.
A Ciência da semana: como combater a desinformação sem ferir direitos fundamentais?
As negociações sobre um “Acordo sobre a Pandemia, da OMS” foram retomadas esta semana na Organização Mundial da Saúde (OMS), a fim de elaborar um instrumento juridicamente vinculativo, que visa fortalecer o papel da OMS na prevenção, preparação e resposta a futuras pandemias.
O projecto de texto actualmente em apreciação comprometeria os Estados a “combater” a informação enganosa, ou a desinformação, sem oferecer uma definição para estes termos ou especificar como tal seria feito. Exigiria também a “gestão” das chamadas “infodemias”, definidas como “demasiada informação, informações falsas ou enganosas durante um surto de doença”, causando “confusão” e também “desconfiança” nas autoridades de saúde.
“Especialmente no contexto de pandemia, o fluxo irrestrito de informações é fundamental. No entanto, o actual projecto do Acordo sobre a Pandemia da OMS implica que as pessoas devem ser protegidas de “informações” que possam ser subjectivamente rotuladas como “enganosas” ou simplesmente consideradas “demais” pelas autoridades. Tal abordagem representa uma ameaça à liberdade de expressão. O imperativo de prevenir e responder eficazmente a futuras ameaças pandémicas não deve ser feito à custa das nossas liberdades fundamentais”, afirmou Giorgio Mazzoli, Diretor de Advocacia da ONU na ADF International. “Todos concordam que a vida é preciosa e que os Estados têm interesse em proteger a saúde pública. Mas algumas das violações mais graves e sistemáticas dos direitos humanos do século passado ocorreram durante emergências públicas e devemos estar vigilantes para proteger direitos duramente conquistados – especialmente em tempos de crise”, concluiu Mazzoli.
O Acordo sobre a Pandemia está preparado para servir de modelo para a forma como a OMS e a comunidade internacional irão evitar futuras pandemias. Considerando a sua importância e natureza vinculativa, o processo de negociação do texto – que começou em Março de 2023 – foi excepcionalmente rápido, em comparação com os prazos normais. O projecto de texto exclui expressamente a possibilidade de os Estados introduzirem “reservas” – isto é, optarem por não aderir a qualquer disposição do tratado.
A Homenagem da semana: ao contribuinte português
Perante o que hoje aqui trago, não posso deixar de homenagear o contribuinte português. A sua capacidade de “abnegação” perante a gestão calamitosa, desde há décadas, do Serviço público de Saúde merece destaque. Outros países, como os da norte da Europa, decerto não seriam tão “abnegados”. Obviamente, países e povos diferentes, sem histórico de bancarrotas regulares, dos seus Estados.
Como alguém dizia, há uns anos: “o povo aguenta? Ai aguenta, aguenta!”. Aguenta, demais, e para lá daquilo que se poderia aceitar…
*Mário Freitas, médico consultor (graduado) em Saúde Pública,
competência médica de Gestão de Unidades de Saúde