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Folie à deux – Adagio ma non troppo

Memórias profundamente cravadas resistem até às mais intensas forças erosivas da distância e do tempo.
No currículo do primeiro ano de Medicina havia uma cadeira de Psicologia Médica. A professora, psiquiatra, não só nos resgatava da maldita Anatomia como nos dava o que não eram aulas propriamente ditas.
(Ou será que eram, todas as outras é que não?)
Hora marcada para começar, não tanto para terminar. Uma dúzia de caloiros em cada vaga, todos a leste. Numa espécie de terapia de grupo, dirigida por uma maestrina inspiradora, semeava-se, sem que o suspeitássemos, Psiquiatria em cada um de nós.
Anos mais tarde, um outro professor de Psiquiatria
— Nenhum Psiquiatra é verdadeiramente Psiquiatra até perder um dos seus doentes para o suicídio. – disparava, em jeito de tiro de alerta, antes de relatar dolorosamente o “seu” primeiro suicídio. O eminente professor assumia-se ali vulnerável, verdadeiro e falho, como todos nós. A sua humildade, do alto da cátedra, sensibilizou-me.
A humanidade e a generosidade dos meus maestros têm sido bênçãos que não me cansarei de agradecer. Muitos não eram sequer psiquiatras, nem tampouco médicos ou psicólogos. Eram e são doentes, ou familiares de doentes, com quem tive a felicidade de me cruzar e aprender.
A primeira vez que me falaram de suicídio foi ainda na infância ou na adolescência. O meu avô paterno passava uma boa parte do nosso tempo a contar-me as suas histórias. Sempre da mesma forma. Ipsis verbis, ipsis pausas, ipsis entoações, ipsis tudo. Ainda hoje saberia replicar muitas, ao seu jeito, minuciosamente.
(Que saudades das suas histórias, avô!)
O mais das vezes, recordações de uma Angola distante, que não existia já senão na sua cabeça e na memória coletiva dos que lá tinham vivido naqueles tempos.
— Chegámos de África em 75. Voltámos a esta terra que há muito não era a nossa. Eu tinha 48 anos… tivemos de recomeçar do zero!… Alguns de nós não aguentaram.
Depois desta frase, um silêncio prolongado, sempre. Todas as vezes.
— Alguns de nós não aguentaram.
Morreu-me o primeiro doente por suicídio ainda no primeiro ano da minha formação em Psiquiatria. Tinha tido alta do internamento semanas antes. Vivia com uma depressão, sua inquilina há anos, e a mãe. Era o único cuidador dela, idosa, totalmente dependente, incapaz sequer de reconhecê-lo. A mãe morrera talvez um mês antes de ser internado na Psiquiatria. Ele, em queda livre. A depressão, a corroer ferozmente a pele e osso que lhe restavam. Confidenciou-me uma vez, sem futuro na voz,
— Vivo sozinho numa casa com oito assoalhadas.
Em tempos, uma família imensa e a casa pequena. Oito assoalhadas. Em todas, memórias com fartura. Semanas antes e a casa ainda viva. (Ma non troppo.) Com ele, a depressão, a mãe e a missão de cuidá-la.Com a partida da mãe,
— Vivo sozinho numa casa com oito assoalhadas.
foi-se o sentido. Ficou o vazio. A solidão. O silêncio. A cada instante, as memórias de uma casa e um coração cheios mais remotas. No fim, sobrou apenas a dor insuportável das perdas e perdas e perdas. Foi nessa casa grande que também ele se perdeu. E partiu. Sozinho.
— Alguns de nós não aguentaram…
Com ele, e com muitos outros doentes, aprendi sofridamente Psiquiatria. E também com os professores da faculdade e outros maestros, que tão bem souberam lançar sementes à terra. A terra que o meu avô lavrara comas suas histórias.
A Psiquiatria é a mais bonita e a mais dura das especialidades médicas.

CONTACTOS DE APOIO E PREVENÇÃO DO SUICÍDIO:
SOS Voz Amiga: 213 544545, 912 802669, 963 524 660;
Conversa Amiga: 808237327, 210027 159;
Linha de Saúde Açores: 80824 60 24.

João Mendes Coelho*

  • Médico psiquiatra e adictologista
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