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Ferreira de Castro,modelo de resistência e cidadania

A tertúlia que reunia, diariamente, na Pastelaria Veneza era um espaço de convívio literário e, sobretudo, de militância cívica em oposição sistemática ao salazarismo e ao marcelismo, para construir um Portugal livre e democrático.

Tive o privilégio da convivência assídua com Ferreira de Castro, desde 1959 até 1974, data da morte. Integrou-me na tertúlia que reunia, diariamente, ao começo da noite, na Pastelaria Veneza (Avenida da Liberdade) ou nos encontros, depois do almoço, na Guimarães Editora (rua da Misericórdia). Devo esta aproximação ao escritor Assis Esperança que conheci em Ponta Delgada nos anos 50 (Assis Esperança deslocava-se aos Açores como inspetor das máquinas Singer e frequentava o Bureau do Turismo dirigido por Silva Junior – que viria a ser diretor do Diário dos Açores – e até a Loja de Viriato Moreira, na Ribeira Grande, sempre repleta de adeptos ferrenhos do Benfica. (Lembra – se José Amaral? Lembra-se professor Gaudêncio?..) Logo de manhã ficávamos a saber tudo que acontecia desde o Nordeste até aos Mosteiros e não saía nas paginas circunspetas e meticulosas do Correio dos Açores, do Açores, do Açoriano Oriental, ou do Diário dos Açores… )O privilegio do meu convívio com Ferreira de Castro foi tanto maior quanto era convidado desde 19631973 a estar à mesa (com a minha família) no jantar do Dia de Natal e outras efemérides em que participavam sua mulher a pintora Helena Muriel, a filha Elsa (médica, felizmente viva) e, ainda , Arlindo Vicente , a esposa e o filho António Pedro. Ferreira de Castro era um modelo de convivência e de resistência, nos anos bravios e adversos do salazarismo. Correndo todos os riscos insurgiu-se contra as iniquidades da ditadura de Salazar e Marcelo Caetano apoiada na repressão da PIDE, na prepotência dos Tribunais Plenários, na arbitrariedade da Censura/Exame Prévio, na aliança com todas as outras instituições que asseguravam a continuidade de um Portugal arcaico.Todos os que pertenciam à tertúlia de Ferreira de Castro inseriam-se na saga da resistência, em face da repressão, da tortura, do exílio. Correspondia às interrogações da consciência moral, na recriação de Prometeu, de Anteu e de Sisifo que o poeta João de Barros – amigo muito querido – assinalou na irradiação destes versos: “Que voz repele, e afronta, e cala /Este tumulto de ódios cegos, /Que ruge e clama e ofende em vão?». A Ode à Liberdade de Jaime Corte são também sintetizou esse repúdio ao «ódio fanático dos bonzos», ao «ciúme vil dos fariseus». Para louvar «a cada novo dia e duro preço», o «sopro e a lei da criação». Era a ambição irreprimível para transpor a incerteza, a violência, a desigualdade e estabelecer uma cultura de tolerância e diálogo.Contudo, passava de mão em mão , numa cópia dactilografada em papel Químico este outro poeta de Jaime Cortesão, a propósito de Salazar: «Por ti, pelo teu ódio à Liberdade/ à Razão e à Verdade,/ a tudo o que é viril, Humano e moço,/ a fome e o luto apagaram os lares/ e os homens agonizam aos milhares/ no exílio, no hospital, no calabouço.«Por ti raivoso abutre/ cujo apetite sôfrego se nutre/ de lágrimas, de gritos, de aflições/ gemem nas aspas da tortura/ ou baixam em segredo à sepultura/ os mártires que atiras às prisões.«A este claro Povo, herói dos povos,/ que deu ao Mundo mundos novos,/ mais estrelas ao Céu, mais luz ao dia;/ a este livre e luminoso Apolo/ atas as mãos, os pés e o colo,/ e encerras numa lôbrega enxovia.«Falas do céu, como um doutor no templo/ mas tu encarnação e vivo exemplo/ da hipocrisia vil dos fariseus,/ pelos sagrados laços que desunes,/ pelos teus crimes, até hoje impunes/ roubas ao mesmo crente a fé em Deus.«Passas… e mirra a erva nos caminhos,/ as aves, com terror, fogem aos ninhos,/ e ao ver-te o vulto gélido e felino,/ mulheres e mães, lembrando os lastimosos/ casos de irmãos, de filhos ou de esposos,/ bradam crispadas as mãos: Assassino! Assassino!«Passas… e até os velhos, cujos anos/ têm costumado a monstros e tiranos/ dizem, com a boca cheia de ira e asco:/ Sobre esta Pátria mísera que oprimes,/ jamais alguém foi réu de tantos crimes.«Vai-te! Basta de vítimas! Carrasco!/ Passas… e ergue-se, vai de vale a cerro/ dos hospitais, do fundo das masmorras/ às inospitas plagas do desterro,/ um coro de ais, de imprecações, de morras. São multidões que rugem num só brado:/ Maldita a hora em que tu foste nado!/ Que se malogre tudo quanto almejas;/Conturbem-se os teus dias de aflição;/ Neguem-te as fontes água, a terra pão/ e as estrelas a luz – Maldito sejas!A vida de Ferreira de Castro, tal como a sua obra , acentuam a importância de conjugar a liberdade com a justiça social e a concretização das necessidades básicas num ensino público, laico e democrático; a urgência de operacionalidade e eficácia na Justiça em todos os sectores do Estado. Mantinha uma conduta discreta – mas firme – perante fatos, figuras e acontecimentos políticos e sociais que caracterizavam todos os ditadores de ditaduras, quer de direita, quer de esquerda. O diretor do Centro de Estudos Ferreira de Castro, em Sintra, Ricardo António Alves salientará estes aspetos nos próximos volumes de Ferreira de Castro Uma Biografia. O primeiro volume, recentemente, publicado circunscreveu-se aos anos de 1898-1919.A leitura de alguns dos livros de Ferreira de Castro – com todos os reparos críticos inevitáveis – continua a ser tanto mais relevante, oportuna e significativa quanto assistimos ao adiamento sistemático de projetos estruturais para responder a situações precárias. E quando também se depara um progressivo embranquecimento do passado. Desse passado que nos queria «orgulhosamente sós», de costas voltadas para o mundo.Ao alertar-nos para estas realidades preocupantes, Ferreira de Castro comunicava-nos as suas reflexões e advertências numa escrita ágil, fluente, incisiva- o repórter do quotidiano que sempre foi – sem o esplendor verbal de Aquilino e as ruturas formais e concetuais introduzidas pela vanguarda modernista – Fernando Pessoa e Almada Negreiros destacam-se entre os grandes protagonistas – que se afirmaram, por exemplo, nas revistas Orpheu, Portugal Futurista, Athena e Contemporanea. A ponte entre estas duas tendências decorria através do jornalista micaelense Rebello de Bethencout que fora o chefe de redação do Portugal Futurista e tinha uma crónica semanal no Diário dos Açores com o título genérico Carta de Lisboa.Outro motivo do meu apreço por Ferreira de Castro, como cidadão exemplar e escritor, reside no modo como procedia ao reencontro com as raízes, em Portugal ou no Brasil, à exigência de emancipação, à atenção concentrada nos sinais de expectativa, em face daquele mundo já em mudança. Guardo desse convívio, a lição inesquecível da militância cívica para construir um Portugal livre e democrático.*Jornalista, Carteira profissional número UM. Sócio efetivo da Academia das Ciencias

António Valdemar*

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